quinta-feira, janeiro 06, 2011

O Twitter, o cinema falado e o futuro

Não Tem Tradução
Noel Rosa
Composição: Noel Rosa

O cinema falado é o grande culpado da transformação
Dessa gente que sente que um barracão prende mais que o xadrez
Lá no morro, seu eu fizer uma falseta
A Risoleta desiste logo do francês e do Inglês
A gíria que o nosso morro criou
Bem cedo a cidade aceitou e usou
Mais tarde o malandro deixou de sambar, dando pinote
Na gafieira dançar o Fox-Trote
Essa gente hoje em dia que tem a mania da exibição
Não entende que o samba não tem tradução no idioma francês
Tudo aquilo que o malandro pronuncia
Com voz macia é brasileiro, já passou de português
Amor lá no morro é amor pra chuchu
As rimas do samba não são I love you
E esse negócio de alô, alô boy e alô Johnny
Só pode ser conversa de telefone...


Esse é um samba do aclamado Noel Rosa, datado de 1933. Para além da genialidade musical do autor e de toda a discussão a respeito da influência negativa da contaminação de nossa cultura pelos padrões ianques, o que me chama atenção nessa canção é a preocupação do nosso querido Noel com o peso da “modernidade”, ou em como poderiam contribuir as novidades tecnológicas para a destruição do samba do morro, nascido e eternizado nos botecos, em pandeiros e violas guiados por boêmios que dividiam o trabalho das mãos entre tocar e levantar os copos de birita. Hoje, passado tanto tempo, é engraçado perceber que o “cinema falado” não acabou com o samba, nem ajudou a o traduzir para o inglês ou o francês. Aliás, se o fez e quando fez, serviu de divulgação para o resto do mundo, fazendo do samba um estilo admirado em todos os continentes. Soa estranho, inclusive, falar em “cinema falado”, pois nos é surreal a idéia de um cinema sem áudio. O telefone, por sinal, deve ter contribuído em muito para a evolução, disseminação e, por conseqüência, perpetuação do samba como elemento cultural fundamental de nossa sociedade.

É preciso ter muito cuidado nessas previsões. A humanidade é marcada por exemplos de premonições bombásticas e apocalípticas que no fim se desmancharam no ar, no passar dos anos.O âmago desse comportamento está na incrível aversão ao novo, fruto da condição humana e do conforto a nós trazido pela ordem social. Mudar incomoda. Incomodou ao Noel, boêmio, artista, liberto... Imaginem o quanto incomoda também aos críticos saudosistas, que cultuam o vinil e a máquina de escrever...

Noel temia que a tecnologia fizesse o samba se perder. E ele tinha razão. As previsões provavelmente eram pertinentes em seu tempo, apesar de o futuro ter revelado-as totalmente inócuas. Isso me fez lembrar nossos dias atuais. A comparação é fácil: todos nós já ouvimos em rodas de amigos ou em discussões na TV como o Orkut têm destruído as relações sociais, ou como o Twitter encerra qualquer chance de se ter um jornalismo de qualidade. Enquanto vivemos a explosão da grande rede e de seus cada vez mais variados tentáculos, uma conclusão de em que medida essa avaliação negativa é pertinente ou previsões de para onde ela nos levará são totalmente inúteis, assim como hoje nos parece cômica a apreensão de Noel com o telefone e o cinema falado. O que a sociedade fará com o Orkut, o Facebook e o Twitter são questões que ainda serão respondidas nos próximos anos, e a opiniões emitidas agora não passam de especulações.

Da mesma forma que o telefone foi um elemento de comunicação que revolucionou o mundo e nos fez romper barreiras, e o áudio no cinema nos proporcionou um entretenimento até hoje muito bem aceito, as ferramentas da grande rede tem um potencial enorme. O Twitter é a forma mais bem sucedida já vista na divulgação rápida de uma informação: a razão de ser do jornalismo. O Orkut nunca me impediu de ter vida social – pelo contrário, já me ajudou a dizer muita coisa que não conseguiria face a face, e até a concluir alguns flertes... Se focarmos no potencial da ferramenta, podemos visualizar que as conseqüências de seu uso são, na verdade, conseqüências de sua manipulação e, mais uma vez, a responsabilidade é de toda a sociedade. Assim como o samba não se perdeu, não se traduziu nem virou apenas conversa de telefone, cabe a nós fazer com que a grande rede sirva de ferramenta para chegarmos a uma sociedade mais justa, mais democrática e mais humanizada.

Isso já vem acontecendo. O exemplo da última eleição é notório: nunca os lados da disputa democrática ficaram tão evidentemente separados e delimitados. Além disso, ao contrário do que vi alguém famoso dizer, as redes sociais não são a causa da geração “racista, preconceituosa e atrasada” que vemos no mundo virtual. Ela é, na verdade, o instrumento que revela a existência desses grupos. Escondidos atrás das telas de LCD, o facista mais radical e o socialista mais inflamado têm o mesmo espaço. A existência desses grupos, ainda que choque, precisa ser de conhecimento geral, e antes da grande rede isso era de fato impossível. Tem como ser mais democrático?

Enfim, meus caros, pode não parecer, mas esse texto é uma mensagem de ano novo (pelo menos era o que o autor pretendia no começo...). Não temam o novo. Não prevejam desgraças. Encarem, vivam e se transformem em algo melhor. Não parem no meio do caminho. Ah, e se puderem, ouçam Noel. Feliz ano novo!