terça-feira, novembro 23, 2010

Sobre Ícaro e as máscaras de oxigênio

Sim, ele caiu. Teve uma idéia brilhante, construiu com maestria as asas planejadas, utilizou o melhor material que dispunha. Mas caiu, e morreu. Ícaro morreu porque tinha que morrer. Porque o lugar dele era aqui embaixo. O nosso lugar é aqui embaixo. Apesar da nobreza da idéia, Ícaro foi inocente ao acreditar que poderia ir além e, de certa forma, punido por ter sido genial. Ao pensar nessa antiga história, enquanto me arrumava na pequena poltrona dentro do Airbus A-321 que fazia um vôo comercial pela TAM, indaguei: “o que estamos fazendo? Vocês esqueceram do Ícaro?”.
A aviação comercial cresceu assustadoramente. O acesso dos brasileiros aos vôos domésticos talvez tenha sido a maior revolução de que já tivemos notícias em relação a meios de transporte em massa. Os aviões são meios de transporte sabidamente seguros. Contudo, meus caros, eu tenho que admitir que em nenhum momento sinto-me confortável dentro de um “bichinho” daqueles. Isso deveria ser óbvio, mas não é simplesmente pelo fato de que as pessoas, dizia uma amiga, acostumadas a voar periodicamente, de fato esquecem o quanto é desafiador romper os céus dentro de uma caixa de metal.
Decerto que algumas vezes em minha vida me senti punido por “pensar demais”. Voar é só mais uma dessas situações. A expressão de tranqüilidade nas faces das pessoas sentadas ao meu lado me incomoda. Os papos cotidianos me causam certa revolta. Voar deveria ser um momento senão de respeito, no mínimo de reflexão. Estamos, cada decolagem, rompendo uma barreira natural, e isso deveria gerar conseqüências. Sei que de certa forma a conseqüência se manifesta, ainda que raramente, mas o momento deveria ser de respeito porque a resposta da natureza pode acontecer em qualquer vôo.
Estou eu lá, enfim, acomodado. Ouvindo música. As instruções de segurança deixam clara a gravidade da transcendência de um vôo. E mesmo assim as pessoas não a notam. O que pode ser mais assustador do que estar dentro de um objeto mais pesado que o ar, com uma pressão interna maior que a externa? Como é possível sorrir ao ser informado que sua poltrona é flutuante? Eu não quero saber que é possível flutuar com ela. Eu não quero flutuar! A idéia de flutuar em meio ao oceano frio e vazio, vendo barbatanas de tubarões circulando a tal poltrona sempre me vem nesse momento e a sensação passa longe do confortável. Considerando que a única emergência para qual não há medidas de segurança – queda do avião e morte imediata de todos os ocupantes – é ignorada nessas instruções, é fácil concluir que a conseqüência lógica dos avisos de segurança deveria ser o pânico geral. É incrível que isso não aconteça.
E por que não acontece? Essa era uma boa questão. Certamente me ajudaria a ocupar a mente durante as duas horas e meia de vôo. Pedi a primeira cerveja (finalmente descobri que prefiro voar TAM, como a maioria das pessoas. Não pelo conforto óbvio de seus aviões, mas sim por ser a única companhia que me oferece a vantagem de ficar bêbado “de grátis”. Para além da vantagem econômica, isso faz a turbulência parecer montanha russa), e me pus a pensar. Trata-se, obviamente, de um exercício mental fantástico. O cenário pintado acima assusta a qualquer ser humano em sã consciência. A qualquer momento máscaras de oxigênio podem cair a sua frente, lhe oferecendo a única alternativa de continuar respirando, e isso é por si só aterrorizante. Se todo mundo pensasse no que pode dar errado num vôo, o contexto seria de tensão, no mínimo. As possibilidades de problemas são tão amplas quanto as direções possíveis de uma turbulência (lembro-me de como achei diferente a sensação de chacoalhar para cima, para baixo, esquerda, direita e diagonais (!), na ocasião do meu primeiro vôo).
O fato é que as pessoas simplesmente não pensam nisso. Levadas pelo cotidiano, pelos problemas “em solo”, ou até mesmo por uma boa companhia, transformam o ambiente interno de um avião em algo completamente descolado de seu ambiente exterior e tudo que ele representa: perigo. Como Ícaro, que viu na beleza do sol uma razão convincente para continuar subindo, nós enxergamos no ambiente agradável criado dentro dos aviões um motivo razoável para ficarmos tranqüilos. É um artifício social, rapidamente entendido por todos que voam cotidianamente, e acabei chegando à conclusão de que o ambiente forjado é necessário para vôos seguros. Como todos os acordos tácitos impostos pela sociedade, tem como fim último evitar o caos. Nesse caso, um caos multiplicado por 11 mil pés de altura...
Entretanto, apesar de sua relevância, trata-se de um acordo coletivo extremamente frágil. Isso se torna claro quando um passageiro resolve não aceita-lo. Qualquer um que demonstre desespero dentro de um avião acaba destemperando outros tantos, se não todo o resto. Quando alguém se toca que está a 11 mil pés de altitude e resolve tentar alertar os outros, a reação geral é de desconforto, típica de quebras unilaterais de um acordo coletivo velado. Se todos ficam mais tranqüilos, esquecer as possibilidades de tragédia se torna mais fácil.
Uma garotinha começou a chorar, ao meu lado. Não era fome, nem sede, nem frio, então aquele choro começou a me lembrar do enorme risco de morte que eu sofria naquele momento, e o meu maior desejo passou a ser que ela se calasse. “Entupam a sua boca com algodão, mas façam-na parar!”, pensamos eu e todos os outros 200 passageiros... A garotinha representa, ali, a quebra do acordo. Engraçado como o desconforto causado nessas situações nos faz esquecer outros fatos sociais importantes: era uma garotinha, indefesa, chorando. Quando pisei em solo, senti remorso por ter enfiado tantos tufos de algodão em sua boca, em meus pensamentos. Uma pessoa normal deveria ter ficado com pena dela.
A essa altura, depois da quarta latinha, eu já me sentia muito melhor. Vi o farol da Barra e pensei que não adianta querer alertar aos outros. Eu que preciso entender e participar do acordo. Como fez Ícaro, olhar para cima, e não para baixo. Beber a cerveja, curtir o sobe-desce e parar de olhar fixamente para a turbina. Afinal, se a natureza resolver me punir como fez a Ícaro, ao menos terei a chance de conhecer as famosíssimas máscaras de oxigênio. E minhas asas nem são de cera... Que a natureza espere mais um pouco pela minha nobre alma. Ah, como é bom pisar no chão!

 
p.s.: Após escrever esse texto, descobri que os passageiros americanos concordam comigo.

quarta-feira, outubro 13, 2010

Ensaio

Estou em casa sem trabalhar há uma semana e, como me disseram recentemente, cabeça vazia é oficina do diabo. Ontem eu disse a minha psicóloga (é, eu tenho uma) que odiava meu trabalho e que estava com vontade de largar tudo e fugir para Bali. Ela começou a rir e me perguntou: “você foi muito ao cinema esses dias?”. Não, na verdade eu não fui assistir a “Comer rezar e amar”, que era o que ela queria saber, mas passei 72 horas em frente à televisão assistindo à maratona de Grey’s Anatomy, o que me fez considerar seriamente se eu não deveria ter feito medicina, da mesma forma que eu pensava em como seria legal se existissem vampiros quando assistia Buffy aos 15 anos ou como eu e minha irmã queríamos ser agentes do FBI até os 12 anos.

A verdade é que todo o meu imaginário sobre o mundo do trabalho foi construído em cima de séries como Arquivo X, assim como o meu imaginário sobre o amor é uma colagem dos filmes românticos dos anos 90. Eu li na internet um dia desses que uns pesquisadores da Austrália resolveram expor um grupo de casais a uma overdose de comédias românticas e assim descobriu que ver muita balela hollywoodiana aumenta o número de rompimentos e divórcios porque eleva as expectativas amorosas das pessoas. Sendo assim, não é de se espantar que eu tenha uma psicóloga. Eu sempre desconfiei que a culpa dos meus problemas mentais era da televisão. E eu sou uma cinéfila descontrolada. E também uma leitora de romances de mulherzinha convicta.

Eu comecei lendo suspense. Aos doze anos já tinha lido todos os livros da Agatha Christie, o que me fez escrever uns contos péssimos de suspense. Tive a fase dos romances históricos, o que serviu para suprir as lacunas geradas pelo meu sono incontrolável durante as aulas da quinta série até o fim do colégio (na verdade eu durmo até hoje se tiver que ficar ouvindo alguém discursar por mais de 15 minutos antes do meio-dia). Depois fiquei louca por Stephen King e suas histórias fantásticas. Noites e noites sem dormir por causa de Cemitério Maldito e A Coisa, e um frenesi descabido por causa de O Talismã. Não vou ficar aqui descrevendo minha trajetória literária pop, mas em algum momento dos meus vinte e poucos anos eu descobri a Marian Keyes e aí o estrago estava feito. Ela escreve sobre mulheres de vinte e poucos anos que estão tentando descobrir quem são e o que querem da vida e do amor, impossível não me identificar. Daí descobri todo um nicho desses romances e devorei um atrás do outro. E o pior é que eu entro completamente nas histórias. Eu virei essa madrugada lendo um romance de mulherzinha e eu simplesmente senti tudo o que a personagem principal sentia. Dor, medo, dúvida, desejo, paixão incontrolável, ódio da melhor amiga que escondeu dela a volta de seu ex-namorado anos atrás, e tenho bastante certeza de que, ao final do livro, quando ela beija o marido e os dois são felizes para sempre enquanto ela é uma fotógrafa bem-sucedida em New York, eu estava sorrindo e suspirando feito uma idiota.

Eu sei que tudo isso parece uma grande idiotice, mas eu tenho um ótimo argumento para me defender: ler e assistir sobre os conflitos de cada um, suas incertezas, seus limites, ainda que esse “cada um” seja composto por personagens fictícios, é uma forma de buscar uma compreensão maior da condição humana. Eu sei que isso soa completamente ridículo mas é nisso que eu realmente acredito. É claro que eu não assisti a Uma Linda Mulher umas quinze vezes para buscar um entendimento melhor sobre a condição humana. Todo mundo gosta desse filme por motivos básicos e simples: romance, compras e, principalmente, esperança. Mas a reflexão é uma coisa que acaba vindo como efeito colateral, nem que seja para chegar à conclusão de que contos de fadas não existem. A gente se coloca no lugar das pessoas, seja uma história real ou um filme, e tenta entendê-las. A gente se pergunta se todo mundo é assim. Se existem sentimentos universais. Se todo mundo tem dentro de si a mesma medida de bondade e maldade. Se existe mesmo bom e ruim. Se sonhos são possíveis. Sobre até onde somos capazes de ir, seja movidos por ódio, medo ou amor. Não importa se estamos falando de uma aranha gigante alienígena assassina ou de uma tragédia cruel que vimos no jornal. Tudo isso tem o poder de nos fazer refletir e assim contribuir para a construção daquilo que somos e daquilo em que acreditamos.

Minha psicóloga me disse esses dias que o ato de ensaiar uma apresentação não diminui nossa insegurança na hora da apresentação de fato simplesmente porque fizemos mais uma revisão do conteúdo, mas porque cria no cérebro a sensação de déjà-vu, de que nós já fizemos aquilo antes, e assim tudo fica mais fácil. Ela me sugeriu então ensaiar toda vez que eu estivesse receosa ou insegura – ensaiar conversas difíceis com os pais ou o namorado, ensaiar entrevistas de emprego, ensaiar a entrada na igreja, qualquer coisa. Logo depois eu li em uma revista que os sonhos nos ajudam a aprender comportamentos. Para mim a ficção também é assim. Não são só um monte de idéias e valores loucos que entram no seu cérebro sem nenhum filtro. É como um ensaio. Você se vê na pele da Meg Ryan ou do Nicholas Cage apaixonados, ou então pensa em como seria ser o Dr. Shepherd na sala de operações, e quando você chega lá, guiado por tudo que você aprendeu com seus pais, suas amigas de escola, seus professores, a revista Atrevida, e, mais especificamente no meu caso, as aulas de antropologia das emoções e o filme Cidades dos Anjos (que é uma refilmagem), pensa: “Ah, então é assim...”.

sexta-feira, outubro 01, 2010

Íbis*

Ele nunca notara o ônibus tão lento. Os joelhos movimentavam-se freneticamente e sem a sua ordem, como se algo os tivesse dado vida própria, no pequeno espaço disponível entre as poltronas sujas do antigo coletivo executivo. As sinaleiras dos carros nas ruas piscavam diferentes tons de laranja, numa tentativa inconseqüente de sinalizar uma mudança de faixa completamente inútil em meio àquele congestionamento sem fim. Ele tentava encaixar as piscadelas dos veículos entre os segundos passados; com o tempo, conseguiu encontrar uma que piscava exatamente uma vez por segundo. A cada sessenta piscadelas, ele estava mais um minuto atrasado.
E aquela camiseta amarela? Ele nunca usava amarelo, sentia que o deixava sem vida. Além disso, estava muito apertada, como se sua intenção fosse mostrar músculos que, no seu caso, não deveriam ser motivo de orgulho. A senhora do trabalho disse que ele estava bonito. Isso era bom, apesar dela gostar de praticamente tudo que ele vestia (ou, pelo menos, de sempre falar que tinha gostado). Em meio ao exame da blusa, notou que tinha exagerado no perfume. Estar cheiroso é bom, mas causar asfixia normalmente não é bem visto. Perfume demais se não ajuda, atrapalha. Abriu a janela pra “gastar” o aroma. Ah, mas que bela sinfonia de buzinas podia-se ouvir lá fora...
Voltou-se para dentro do ônibus e viu pessoas amarrotadas e descabeladas, dormindo tranquilamente durante o congestionamento. Para elas, tratava-se apenas de mais uma volta de um dia de trabalho. O que fazia ele ali, banho tomado, camiseta apertada, completamente embriagado de perfume, ansioso como um adolescente? Mãos trêmulas, ensaiava as falas. Sabia que ao fim não falaria nada daquilo. Quando pensava nas coisas que haviam acontecido na ultima semana e o levaram a estar ali, sentia um quê de ridículo e absurdo naquilo. Teve inclusive vontade de descer e voltar para casa. Desistiu da idéia quando concluiu que fugir àquela altura deixaria tudo ainda mais absurdo (e ridículo).
Em seguida, chegou à conclusão inquestionável de que os sinais vermelhos estavam colocados estrategicamente do modo mais eficaz possível para o objetivo de lhe atrapalhar. Ele era o único indivíduo no ônibus que tinha pressa. Ele e os seus joelhos, agora com vida própria e movimentos cada vez mais frenéticos. Seria possível levantar? “É só chegar, pegar o que é meu e ir embora. ‘Eu sou o homem, pele solta sobre o músculo’**!”, pensava e ouvia, no mp4 Player que tornou todo aquele suplício suportável.
Desceu do ônibus cambaleando. Perdeu-se entre as ruas. Começou a correr e logo constatou que, de fato, todo o perfume havia evaporado. Encontrou o prédio. Era bonito, alto, imponente. Os pensamentos eram confusos. Ele não entrou de primeira. Coçou a cabeça. Quis desistir pela última vez. Temeu pelos seus rins. Comprou uma água de côco. A camisa amarela apertando. Os joelhos rebelando-se. A voz completamente trêmula. O suor escorrendo pela testa. Resolveu fazer logo esse “parto”.
Adentrou. Ela era azul. O mundo era azul. Logo tudo se tornou azul. Não disse nada do planejado. Gaguejou. Ela sorriu. Todo o resto perdeu importância. Desde aquele momento, começou a amar. A ela, o azul, e o acaso. Tudo que veio em seguida é inevitável conseqüência.

* Os íbis são aves pernaltas com pescoço longo e bico comprido e encurvado para baixo. São na maioria dos casos animais gregários, que vivem e se alimentam em grupo. De acordo com a tradição popular em alguns países, o íbis é a última ave a desaparecer antes de um furacão e a primeira a surgir depois da tempestade passada.

quinta-feira, setembro 09, 2010

Meu Mundo

O plano era só postar um texto qualquer. O pior texto que fosse. Antônio me escreveu pedindo o divórcio e exigindo que salvássemos o blog em um esforço conjunto. Eu poderia só publicar qualquer coisa antiga, mas me sinto no dever de me justificar. Se eu disser que tenho trabalhado demais, ninguém vai acreditar. Trabalho nunca me impediu de escrever. Eu posso passar o dia editando contratos enquanto organizo frases na minha cabeça. Não, não foi meu chefe quem quase assassinou o blog. Antônio me disse que não tem escrito nada porque eu não tenho cobrado, mas eu sinceramente desconfio que o problema dele seja o mesmo que o meu: amor.

Nesse último post (abaixo) Antônio fala de amor. Mas o que vocês não sabem é que aquele é um texto velho. Porque, em geral, nós dois só falamos de amor quando estamos sentindo falta dele. Quando você tem amor de verdade em suas mãos, você não se preocupa com o que o resto do mundo pensa. Dizer o que você sente não faz a menor diferença se não for para a pessoa que você ama. O resto é o resto. Não importa se a Dilma vai ser eleita, se o seu chefe é um babaca, se o gato roeu o carregador do laptop e por isso você está escrevendo à mão às duas da manhã para não acordar o resto da casa. Tudo o que importa é que, quando você deita a cabeça no peito de quem você ama, o coração dele bate tranqüilo. Esse é o sinal de que o mundo continua girando, e girando em torno desse coração. Se ele está inquieto, você fica inquieto. Se ele está eufórico, você fica eufórico. E o oposto é verdade. Vocês se tornam espelho um para o outro.

Obviamente que já deu para entender o motivo de eu não ter escrito nada nos últimos três meses. Eu simplesmente tenho andado ocupada demais flutuando por aí, admirando os passarinhos. Escrever se tornou supérfluo. Escrever começou a parecer a coisa mais egoísta do mundo desde que essa vontade de dividir todos os momentos com a pessoa amada tomou conta de mim. Você senta sozinho com os seus pensamentos e não cabe mais ninguém ali, no máximo a imagem do outro, mas ainda assim, só uma imagem.

Então, porque eu sei que a vida não é só amor e passarinhos e que é preciso alimentar o corpo e a alma de outras formas, e porque Antônio me deu um ultimato, aqui estou eu falando sobre a minha vontade de passear na praia de mãos dadas. É claro que parte dessa teoria vai por água abaixo se o motivo de Antônio for só excesso de trabalho. Mas e daí? Meu mundo continua girando, não importam os motivos do meu marido bloguístico. Meu mundo, neste momento, dorme e respira tranquilamente.

sexta-feira, setembro 03, 2010

Eu, um monstro

Outro dia eu estava sem ter muito que fazer aqui no trabalho e resolvi dar uma circulada por esses blogs de humor. Eles não acrescentam muito a sua bagagem cultural, mas quase sempre arrancam risos necessários. Deparei-me com um texto simples, bonito e que mudou a minha vida.
Como pude ignorar esse fato por tanto tempo? Lembro como se fosse hoje. Eu devia ter uns doze ou treze anos. Ela não era a primeira, longe disso, provavelmente a terceira ou quarta menina que eu havia decidido amar por toda a vida, do alto de minha pré-adolescência. Era a coisa mais linda que eu já tinha visto: um sorriso largo e tranqüilo, cabelos claros na altura do pescoço, um corpo pequeno, mas já de mulher. Carregava o cheiro da tintura para cabelo que a deixava ruiva, misturando-se ao perfume. É um cheiro que eu jamais vou esquecer. De todo o conjunto de memórias que tenho sobre ela, o cheiro é a mais contundente. Um cheiro forte de uma tintura de péssima qualidade, mas que me traz as mais doces lembranças do início de um amor inesquecível. Lembro, com riqueza de detalhes, de um beijo longo, demorado, próximo ao meu prédio, voltando da escola. Chovia. Tentamos correr para procurar abrigo, mas desistimos. Paramos, nos olhamos com expressões que dispensavam palavras e, por longos três minutos, nos beijamos sem pressa, como se todo o resto do mundo não existisse. Eu sentia o amor pulsando nas artérias e tinha a certeza absoluta que não precisaria de mais nada para ser feliz.

Doce Ilusão.

A parte bonita da história termina aqui. Se você clicou no link e leu o texto que motivou este atual, entenderá que minha experiência apenas corrobora o que nosso amigo descreveu lá.  Essa doce criatura dedicou os dias que se seguiram a essa bela cena romântica ao objetivo sórdido de triturar meu coração e jogar os pedacinhos encharcados de sangue para os cães vira-latas das ruas de Salvador. Me dispensou como quem troca de roupa, mantendo o mesmo sorriso radiante e dando os mesmos beijos sem pressa em outros caras. Vários caras. Quase todos os caras do colégio. E muitas vezes, em minha frente.
Não é muito legal recordar essas coisas, muito menos dividi-las com pessoas que não tem muito a fazer e estão lendo esse blog. Mas é necessário. As pessoas, essencialmente as mulheres, precisam entender que esse tipo de atitude cria monstros. Eu nunca mais, repito, nunca mais fui um bobo apaixonado que beija sem pressa debaixo da chuva achando que aquele corpo vai ficar grudado ao meu para sempre. Passei a me preocupar com a chuva, a preservar meu coração e, mais importante, perdi parcialmente o respeito pelo sentimento alheio.
A culpa não é minha. É como se o encanto tivesse sido desfeito. Não se pode mais seguir numa relação sem entender que aquilo é um meio de se tirar alguma vantagem, como tiraram de mim outrora. Nos relacionamentos seguintes, poucas vezes fui totalmente sincero. Quase nunca confiei plenamente e, quando não estava preso ao compromisso formal acordado entre as partes, quase sempre fui um canalha mentiroso. Isso porque o trauma inicial me forçou a reagir, e essa reação não pode se dar de outra forma que não seja a que leva a canalhice, a cachorrada incontrolável e a infidelidade patológica. Eu passei por tudo isso. Hoje, coleciono histórias nas quais fui o canalha. Outras tantas onde fui injustiçado pela fama de canalha. E ainda algumas outras em que na verdade eu fui o sacaneado, mas dessas quase ninguém sabe. Entendam, mulheres: todo homem foi, é, ou será um canalha. Isso não é lá uma grande novidade para vocês, mas o fato de que a culpa disso é, em praticamente todos os casos, de uma mulher que destruiu o coração do rapaz, ah, disso vocês não se dão conta. O pior é que essa fase é inevitável e o tempo que se leva para sair dela varia muito. Alguns levam a vida inteira. Eu me orgulho de ter sido um canalha muito discreto e gentil, e por essa fase ter durado um tempo relativamente curto.
A coisa funciona como um lacre violado. Não há formas seguras de se reparar. É impossível acreditar novamente no amor eterno, soberano e indestrutível. Nunca mais se ama da forma pura que se configura antes da primeira grande decepção.
Há que se buscar então outras formas de amar. Eu tive experiências maravilhosas, todas bastante sinceras e, por isso, inesquecíveis. Com o tempo o amor se torna algo muito mais racional, e amar alguém pra vida toda passa a ser uma questão de escolha. O amor precisa ganhar contornos racionais para que o trauma do primeiro amor e a crise do cafajeste sejam superados. O homem precisa se convencer de que tem de ser diferente para ser feliz. E ser diferente de um cafajeste significa conseguir amar, da forma mais próxima possível da primeira, que é inalcançável. Há que ter algo de mágico do outro lado. Vocês precisam ser mágicas, para que a racionalidade do homem o convença a amar. A cair no encanto. Mas não é preciso se preocupar muito com isso, por que simplesmente acontece, no tempo certo. E a grande maioria de vocês, mulheres, é encantadora apenas sendo você mesma. Usem essa magia.
O crucial é que as fêmeas, criadoras desses monstros que habitam a terra e são capazes de mentir, enganar e ludibriar a qualquer ser do sexo feminino, tenham cuidado com os julgamentos. Parem e pensem: quantos monstros desses vocês já criaram? Avalie sua responsabilidade, tenham fé, paciência, acreditem no amor que se escolhe, e lutem por ele. Salvem essa alma. Valerá a pena. No final, apesar de toda dor que ele causa, é de mais do tal do amor que esse mundo precisa. Amemos.

quarta-feira, maio 26, 2010

Lampejos vermelhos numa vida cinza

Sabe, algo que sempre me incomodou é o fato de não ser um gênio. Já tive a oportunidade de dividir essa angústia com vocês neste blog. Contudo, pensava eu, ainda sou bastante jovem e, provavelmente, o despertar da genialidade é algo que vem com a maturidade, no amadurecimento do talento. Ledo engano. Se você, como eu, está prestes a completar um quarto de século ou o tem completado recentemente, cuidado. Esse texto pode levar a depressão.

Chico Buarque de Holanda venceu o festival de Música Popular Brasileira em 1966, com a música “A Banda”, que ele escrevera em 1965, então com 21 anos. Também aos 21 anos, Picasso já havia se instalado em Paris e começava a ganhar fama, apresentando ao mundo uma nova forma de fazer arte. Aos 20 anos, em 1924, Pablo Neruda publicava seu primeiro livro, Vinte poemas de amor e uma canção desesperada. Em 1927, então com 23 anos, Neruda é nomeado cônsul (gracias, Wikipédia!). Em 1958, com 17 anos completados, Pelé ganhava a Copa do Mundo e encantava os expectadores europeus com lampejos da genialidade futebolística jamais superada nos campos de todo o mundo, até os dias de hoje.

Há inúmeros outros exemplos. E eles só me fazem pensar que, se eu tivesse mesmo de ser um gênio, já estaria sendo. Conformo-me: tenho 25 anos e não sou um gênio. Terei de ganhar a vida com muito suor e pouco reconhecimento. Quase nenhum status. Nada de glamour.

Até ai, nenhuma novidade. A imensa maioria de habitantes do planeta Terra são pessoas comuns. João’s Quaisquer. São vidas cinzas. Casa, trabalho, trânsito, uma ou outra cerveja no fim de semana, ver o time perder ou ganhar no domingo... Uma emoção bônus num caso extraconjugal é o clímax de uma vida cinza. Uma ou outra infelicidade, um sofrimento fortuito, afinal, porque ser feliz o tempo todo deve ser um saco. Eis o resumo de nossas vidas cinzas e eu estou preparado para o começo do fim.

Todavia, é preciso revelar, sinto um bichinho me corroendo por dentro ao conceber uma vida cinza e feliz. Não sei explicar por que. Mas acredito que isso tenha a ver com o fato de eu ter vivido dias muito mais coloridos, no passado recente. Vivi alguns anos em meio a discussões teóricas, bons shows gratuitos regados a excelente vinho barato, movimentação política interessante, e amplo acesso a cultura, de um modo geral. É estranho perceber que, durante esse tempo, ao qual eu não dei o devido valor por pensar que ele se prolongaria e se tornaria mais prazeroso quando eu dispusesse de recursos financeiros para tornar esses momentos mais sofisticados, a vida parecia apresentar milhões (eu disse milhões) de possibilidades, cores, tons e caminhos a seguir, todos eles interessantes, cheios de arte, cultura e prazer, regados a muito vinho, boa música e, obviamente, luxúria.

Chegou o momento em que precisei me afastar dessas coisas para chegar a outras. Optei pela vida cinza e feliz. Quase não bebo mais vinho. Não lembro a ultima vez em que discuti alguma teoria ou obra literária. E, o pior, as possibilidades que a vida me apresenta são reduzidas. Boas, seguras, mas sem a arte, o prazer e a boemia que outrora saltitavam em minha frente.

Não quero só lamentar, como um velho. Afinal, só tenho 25 anos. Tudo pode mudar, e ainda tenho muitas opções. Mas o bichinho incomoda. Sinto vontade de aumentar os lampejos coloridos dessa minha atual vida cinza. Isso é possível: quando passo pelo Rio Vermelho, assisto a um bom filme, vou ao teatro, enfim, quando deixo que, por alguns poucos instantes, a vida excêntrica de artistas e gênios seja reproduzida em meu viver, geralmente muito pouco artístico e sem nenhuma genialidade.

É de mais cores e tons que todos nós precisamos. A vida cinza é tranqüila e feliz, mas é preciso um pouco da agonia, da falta de compromissos, dos exageros, e dos absurdos completos de uma vida excêntrica. Vamos todos nos permitir mais! Vamos alimentar os sentidos. Vamos ser mais “artistas”. Rabisquem as vidas cinzas de vocês com lápis de cera coloridos! E, claro, me convidem.

domingo, abril 04, 2010

Do amor e dos frangos

Começou mais uma vez. Veio do nada, como sempre. Eu estava bem. Tive um bom dia. Afinal, o que é um bom dia? Fez sol, dormi bem. Minha pele, inesperadamente, estava ótima. Meu almoço desceu meio quadrado, mas, fora isso, tudo foi ótimo. Daí bastou alguma coisa não sair bem como eu queria e me tornei uma megera insuportável. Então me senti péssima porque sou uma megera insuportável, sendo que talvez nem tenha sido tão horrível assim.

Recentemente terminei um trabalho que vinha protelando e arrastando pelos últimos dois anos, e fiquei surpresa ao perceber o peso do fardo que eu vinha carregando. É a primeira vez em dois anos que posso dormir mais um pouco, tomar um chopp ou inventar uma viagem de última hora sem pensar que deveria estar fazendo outra coisa, em outro lugar. Isso me encheu de otimismo, afinal, se eu posso vencer minha auto-sabotagem, posso vencer qualquer coisa. Ou quase qualquer coisa. Mas algo ainda está fora do lugar.

De vez em quando entro em curto-circuito e começo a pensar coisas horríveis sobre mim mesma, como hoje. Sobre como não sou boa o bastante para nada nem ninguém. Então fico com vergonha por pensar essas coisas, porque essa falta de auto-estima só pode ser também um defeito. Por isso fico escondendo o que penso a meu respeito para que ninguém saiba que na verdade me acho uma mosquinha. Ou então conto logo que sou um desastre para me poupar de ver a decepção nos olhos dos outros mais tarde.

Eu me sinto péssima por me sentir péssima assim. E eu tive um dia que tinha tudo para ser ótimo: recebi a mensagem mais romântica do mundo, ganhei um bolo de chocolate, aprendi a fazer ovos pochê, dormi até cansar, passei longe de saltos altos e consegui tirar de letra todos os pepinos e abacaxis do trabalho. E ganhei uma mini-bola histórica Adidas na promoção da Copa do Mundo do cartão de crédito! Cara, quando foi a última vez em que ganhei alguma coisa em promoções ou sorteios? Nunca! Quer dizer, eu ganhei um frango assado no bingo da igreja quando tinha quatro anos. Será que isso conta?

Sabe o que eu queria? Que os afetos fossem como os hinos de times de futebol – incondicionais. Só assim poderia ficar tranqüila com o fato de que, apesar de ser mesmo uma criaturazinha insolente e ranzinza, eu sempre teria para onde correr no fim do dia. Alguém que, quando me ouvisse reclamar que não consegui uma promoção, levasse meio segundo para me dizer: ainda. Será que existe alguém assim? Que sempre me dissesse “ainda”, não importa o quão intragável eu me tornasse?

Acho que sou como uma criança abandonada. Preciso que alguém me diga que sou boa o bastante do jeito que eu sou. Era isso que queria ganhar na promoção do cartão de crédito. Seria bom. Em vez de trocar os pontos por milhas a gente trocaria por amor incondicional. Mas não existe isso de amor incondicional. Amor não se compra e nem se ganha em sorteios. E também não funciona como o hino do Grêmio.

O fato é que temos de ser capazes de cuidar dos nossos próprios demônios. Ninguém deveria ter a responsabilidade de fazer o outro feliz – é um fardo pesado demais para qualquer um. Em um mundo ideal, ninguém precisaria de confirmações nem de reforço positivo para viver bem. Todos se achariam bons o bastante – para qualquer um e para qualquer coisa. Ninguém entregaria sua cabeça (ou sua felicidade) em uma bandeja de prata para um outro alguém. Seria um mundo perfeito, não? Não haveria medo. E não sentiríamos falta de alguém que nos protegesse de nós mesmos.

quinta-feira, abril 01, 2010

Dom Quixote, o trânsito e a vontade de mudar o mundo

Começo o texto com um parêntesis, considerando que isso seja aceitável. Este blog, em tempos remotos, trouxe ao leitor um contato relativamente íntimo com grandes pensadores das ciências humanas, apresentando discussões extremamente complexas e estimulantes e conectando-as ao seio de nosso dia-a-dia, explicando (ou não) fenômenos de nosso cotidiano. O parêntesis é justamente para explicar que, à minha revelia (e falando por mim, e não por minha esposa virtual), a relação entre o tempo em que tenho que viver, de fato, entre problemas burocráticos e métodos mais ou menos eficazes de ganhar dinheiro, e o que posso perder lendo e esquecendo que o mundo existe, mudou radicalmente. Ultimamente tenho tido tempo de ler e-mail do chefe e sinopse de filme. Acho que isso tem sido o suficiente para evitar o surgimento de retardos mentais. Pelo menos isso. Bom, o fato é que o blog segue adiante com histórias do nosso cotidiano que nós, donos deste pequenino espaço, do alto de nosso autoritarismo, julgamos interessantes. Vejam só essa.
Eu sempre tive um orgulho imenso do modo como dirijo. Mas o motivo de tal orgulho, não se enganem, supera a constatação de que tenho as habilidades de um bom condutor. O que me deliciava, deixava entusiasmado, e fazia-me sentir uma pessoa que contribui para um mundo melhor, é o papel de motorista-educador que eu sempre fiz questão de exercer no trânsito.
O cara queria formar fila dupla no engarrafamento, e lá estava eu fechando a porta; outro investia na contramão, mas não imaginava encontrar a mim, guardião da moral rodoviária, buzinando e dando sinais de luz; outro me dava sinais de luz para ultrapassar sendo que estava no limite da velocidade da via, e eu, representante da sagrada lei que rege o trânsito desse país, resistia - num ato de bravura - mantendo-me a 80 por hora. Muitas vezes os transgressores, verdadeiros subversores da ordem e bons costumes do trânsito, me venciam, mas eu morria brigando: nenhum passava sem uma buzina, uma olhada feia, uma fechada de porta.
O mundo se tornava levemente melhor quando eu encampava ações corretivas contra esses desviados, desvirtuadores da ordem pública. Eu era um herói. Sentia um sorriso nos rostos dos pedestres; as pessoas deviam falar de mim, tipo, “olha, aquele cara que não dá mole pros espertinhos no trânsito passou aqui hoje novamente”. Provavelmente, existiam admiradores. Quem sabe um fã clube. Nada mais justo. Heróis estão cada dia mais raros.
Meus dias de glória tiveram fim numa simples carona. O cara era esse tipo de motorista pé duro, bravo, grosso, estúpido, um transgressor típico. Eu, na condição de caroneiro, nada podia fazer. Não poderia entrar em ação sob pena de perder a carona. Mas eu vi a luz no fim do túnel. Uma ponta de esperança para um coração aflito pela vitória eminente do mal: outro herói, ao ver o dito cujo entrar na contramão, buzinou, sinalizou e olhou feio. Que maravilha! Esse mundo está cheio de outros educadores, pensei. Pessoas abnegadas, focadas no objetivo maior de transformar nosso trânsito e, por conseqüência, nossa sociedade em algo melhor! Em meio a esses pensamentos, o tal motorista abriu a janela, olhou nos olhos do meu colega herói e disse “vá se foder, viadinho de merda! A rua é sua é?”. Enquanto eu me preparava para repreender a ação infame, fui surpreendido pelas gargalhadas uníssonas dos outros caroneiros.
Era o fim. Não se poderia mudar o mundo assim. Senti-me um Dom Quixote, numa guerra que só existia em minha mente confusa, e da qual eu não teria a menor chance de sair vitorioso e vivo ao mesmo tempo. O máximo que consegui, durante todo esse tempo de abnegação educativa no trânsito, foi ter sido chamado inúmeras vezes de viadinho de merda. O que não muda nada, tanto na minha orientação sexual, quanto no trânsito e na sociedade. A sorte é nunca ter apanhado. Ou batido o carro. Ou os dois. Onde eu estava com a cabeça? Perguntaria minha mãe...
É muito ruim constatar, mas eu não posso contribuir para uma elevação qualitativa no comportamento da sociedade através do trânsito. E eu achei mesmo que poderia. Agora, piso fundo, aumento o som e torço pra chegar logo em casa. Que se fodam os transgressores e os viadinhos de merda. Não sou mais herói, mas tenho chegado a minha casa todos os dias. O que importa é chegar em casa! E tenho dito.

quarta-feira, março 10, 2010

Dr. Jekyll and Mr. Hyde

Eu fiz uma viagem corrida hoje para renovar meu visto e assim poder concretizar a tão esperada revisita aos States. Às 7:50 da manhã, horário em que normalmente eu nem estou acordada, eu já estava desembarcando em Recife. Meu companheiro de viagem foi um livro água com açúcar, comprado às pressas, chamado “Lembra de mim?”. A trama envolve uma mulher de 28 anos que sofre um acidente de carro e perde a memória. Em sua última lembrança ela tinha 25 anos, dentes e cabelos horríveis, um emprego medíocre e um namorado canalha e desprezível. Mas, para sua surpresa, ao acordar, ela percebe que tem a vida que sempre sonhou: tornou-se uma executiva de sucesso, com dentes perfeitos, lábios de silicone e um marido rico e bonito. É claro que ela acaba percebendo que pagou um preço caro por tudo isso e que nada é tão perfeito assim. Daí vocês podem tirar as conclusões que quiserem sobre meus hábitos de leitura que, somados aos meus estranhos hábitos alimentares (macarrão cru, sopa de miojo e leite com cigarro) e musicais (mania de assistir ao TVZ do Multishow e de ouvir música de corno), me tornam uma pessoa um tanto quanto... bem, pensem o que quiserem.

No táxi, a caminho do consulado, conversando com o taxista tagarela – um fenômeno recorrente em Recife – me dei conta de que já faz quatro anos desde a última vez em que estive lá. Deus, quatro anos é uma vida! Então me peguei pensando: e se eu sofresse um acidente e os últimos quatro anos se apagassem da minha memória? Será que eu ficaria tão chocada quanto a personagem do meu romance clichê? Eu sempre me pego pensando que nada tem acontecido na minha vida e que eu sou absolutamente a mesma pessoa que sempre fui, mas isso não está nem perto da verdade. É que as coisas vão acontecendo tão gradualmente que nós nem percebemos o quanto mudamos. De repente, um dia você acorda e pronto – é outra pessoa.

Há quatro anos atrás eu estava na faculdade, vivia com o pouco dinheiro que eu ganhava estagiando em uma espécie de ONG, usava sandálias de couro, vestidões floridos, morria de vergonha de falar com meus colegas de trabalho e todos os bares que eu freqüentava eram botequins. Hoje eu uso pérolas (de mentira, é claro), blush, trabalho em um banco, posso beber onde eu quiser (ou quase isso) e me tornei uma controladora a quem todos obedecem no trabalho. Se eu não tivesse assistido à novela toda, não entenderia como foi que isso pode acontecer. Mas eu assisti. E o problema todo está aí. Eu me sinto como se essa fosse a vida de outra pessoa.

Tem coisas sobre mim que eu simplesmente não consigo entender. Eu me vejo no trabalho e penso: quem é essa pessoa? Eu tento entender minhas escolhas amorosas e me pergunto: onde estava meu cérebro esse tempo todo? Nem eu consigo acreditar no quanto eu consegui ser ingênua e me deixei levar. Quem era aquela pessoa que viveu no meu lugar nos últimos quatro anos? E, principalmente, onde eu estava com a cabeça para usar sandálias de couro?

Eu me lembro que uma vez minha prima me disse isso, que ela sentia que não era ela a pessoa que tinha vivido determinadas coisas da vida dela. E lembro também de ter pensado: coitadinha, ela está em processo de negação. Só pode ser isso. Eu devo estar em processo de negação. Todas as coisas das quais não me orgulho, essas foram arte da Outra. Eu não estava lá. Eu estava só assistindo. Eu continuo a mesma de sempre. Nada de novo me aconteceu desde que eu tinha 21 anos.

Eu tenho um amigo que brinca com isso, sobre o fato de termos todos duas personalidades. Uma para praia, outra para o campo. Uma que levanta cedo e vai trabalhar, outra que gosta de farrear até tarde. Você culpa uma ou outra de acordo com a conveniência. A gente acaba fazendo muita piada sobre isso, mas a verdade é que cada um de nós é uma pessoa só. A gente tem coisas boas e coisas ruins, dependendo do ponto de vista. Não somos definidos unicamente por uma coisa ou outra.

É por isso que às vezes as pessoas tem opiniões tão diferentes sobre nós, porque elas pegam a única característica visível para elas e definem toda a idéia que fazem sobre a gente em cima daquilo. Aquela única característica passa a definir toda a sua identidade. Quem teve a boa sorte de ver seu lado bom, guarda aquela imagem de você. Mas para quem só viu sua paranóia, você será eternamente não confiável.

É claro que, se os nossos dois (ou muitos) lados estão sempre presentes, o que definirá a forma como alguém te vê não é necessariamente o que você mostrou àquela pessoa, mas, muito provavelmente, o que aquela pessoa escolheu ver em você. E isso, às vezes, simplesmente não depende de você. Eu já encontrei muitas pessoas que não conseguiram me perdoar pelos meus erros. Com certeza elas tiveram seus motivos. Recentemente eu encontrei uma pessoa que me disse: “ah, você tem tantas coisas legais... Porque é que eu vou me importar com isso (leia-se: essa enorme burrada que você fez)? Todo mundo faz besteira de vez em quando”.

Eu sei que devemos assumir a responsabilidade pelas coisas que fazemos. Mamãe e papai acertaram pelo menos nisso. Mas é tão reconfortante saber que existem pessoas no mundo que podem aceitar seu lado médico e seu lado monstro, e ainda assim acreditarem que o lado negro da força não prevalecerá no final. Dá vontade de ser melhor.

sexta-feira, fevereiro 26, 2010

Adeus ao Baço


Vim pra te ver. Pra te festejar. E dizer adeus.
Eu já não sinto dor. Nem prazer. E me faz mais falta a dor... Pouco importa agora. Deixei tuas coisas na área de serviço. Continuas belo, canalha e gentil. Tua feição docemente safada lhe renderá frutos por muito tempo. E eu ainda odeio isso. Só isso. O resto, tua carne em outra carne, teus belos argumentos em outros ouvidos, os carinhos fugazes... É agora arquivo morto. Parte de mim foi extraída. E eu sobrevivo sem ela. Teu novo nome é baço. Ou amígdala. Mas eu prefiro baço.
Não esqueçamos, meu caro, não me deixes esquecer, rogo-te, dos festejos. Disse que vim te festejar. E é verdade. Parabéns, afinal. Conseguistes, com muito esforço, o que tanto planejamos. Pisaste em alguns para tal, obviamente, senão que tipo de canalha tu serias? Mas, diziam os sábios enquanto estavam vivos, o que seria dos meios sem os fins? Eles, os fins. Eles sim importam. Parabéns, afinal!
Não te preocupes comigo. Já na próxima esquina me ajeito. No próximo mês, já sofro. A calmaria angustiante nunca durou muito tempo. A paz dos que não amam é a verdadeira morte. Não quero morrer agora. E amando outro, te incomodo. Ficarei feliz em saber que o rosto doce ganhará rugas ao saber de minha carne em outra carne. És homem, além de baço. Sente-se parte de meu corpo, mesmo já tendo sido extraído dele. Espero, sinceramente, que sofras por isso.
Bons momentos? Eles são sempre os de agora. Não há tato nas lembranças. E eu, meu caro, sou adepta do tato. Quero tatear o mundo. E sua vez já passou. És agora um órgão arredondado, morno, sem graça. Não te tateio mais, querido baço, nem que peças.
És feliz, querido baço, és feliz. Isso é o que importa. Mas não circula por ti mais sangue. Ficarás podre. Aproveita. Logo um verme comerá tua carne. E será o fim. O fim.

sexta-feira, janeiro 29, 2010

Domingo a domingo

Ele acorda as 06h05min da manhã. Cinco minutos atrasado, calculando-se o tempo que precisa para tomar banho, engolir alguma coisa e pegar um ônibus até o trabalho. Acontece que esses cinco minutos a mais de sono são necessários para que ele durma ao menos quatro horas por dia, como recomendou o médico, alertando que era imprescindível caso ele queira passar dos 35 anos, levando-se em conta que ele chega normalmente as 23h00min e fica preso as atividades domésticas, acadêmicas e amorosas até mais ou menos duas da manhã. Mais precisamente, 2h04min da manhã. Não há outro espaço de tempo disponível para esses aspectos que, havia sentenciado o mesmo médico, são importantes para uma vida saudável. O minuto que sobra para que se completem quatro horas de sono é a faixa de erro. Na verdade, ele dorme 4h +/- 01 min. Então ele sai, após engolir algo (com o que ele gasta cerca de 30 segundos até se certificar de que seja comestível) e tomar um banho razoavelmente eficiente. Sai exatamente às 6h43min. As pessoas que moram com ele (aquilo que se chamava família, quando as pessoas tinham tempo de se falar e trocar vivências sobre o dia) ainda dormem quando ele sai. Normalmente, usa um SMS para dar bom dia a sua mãe, e o escreve com admirável destreza considerando os sacolejos que o ônibus oferece.
Chega ao trabalho as 08h00min, quando o engarrafamento não foge do padrão. Inicia-se então o hiato que se configura durante as oito horas de trabalho. Ele já pensara, algumas vezes, em como é completamente alienante passar oito horas fazendo algo que não demanda nenhum pensamento. É possível passar oito horas sem pensar em nada. Sentado, produzindo urina e apertando botões. Isso incomoda ele por cerca de 18 minutos por dia. Normalmente próximo ao horário de almoço. Depois ele sente fome e esquece-se de pensar em como é ruim não pensar em nada.
Sai do trabalho as 17h00min. O seu médico recomendou que fizesse alguma atividade física. Ele preferiria correr, ou nadar, mas para uma ou outra precisaria de mais de 60 minutos. E ele só dispunha de 60 minutos. Então ele deixou essa recomendação pra lá. Sua vó falara certa vez que quem segue tudo que o médico manda acaba mais cedo num caixão. Ele acreditava nisso, afinal, sua vó tinha larga experiência no quesito sobrevivência.
Chega a faculdade as 17h30min. Tem 30 minutos de folga. Desses, usa 13 minutos para comer algo (aqui não perde os trinta segundos que precisaria para verificar se aquilo é comestível, já que vai a uma lanchonete). Os outros 17 utiliza para conversar com os colegas e rir. Felicidade também é recomendação médica.
As próximas quatro horas são de aulas. Quase nunca ele as dá a devida atenção. Quase sempre está cansado. Sai da faculdade as 22h05min. Chega em casa as 23h00min. E o ciclo se repete. Ele não lembra muito bem da feição dos amigos, mas sabe exatamente qual a foto atual deles no MSN. Ou no Orkut. O momento de lazer que se dá das 23 as 2 da manhã é eminentemente virtual. Como o bom dia a sua mãe.
Sua mulher reclama da falta de atenção. De que ele não lê seus emails nem comenta seus textos. Ela vai trair. Se não já traiu. Ele sabe. Pensou em mandar um SMS pedindo desculpas, mas já fizeram isso outras vezes. Pensou em mandar um email. Em seguida, pensou que escrever sobre isso teria um impacto maior. Tirou exatamente 10 minutos dos 18 que utiliza diariamente para se incomodar por não pensar em nada durante oito horas por dia, e escreveu esse texto. Ele espera que funcione.