sexta-feira, dezembro 25, 2009

Coisas*

De cabeça, sem abrir a porta do armário para olhar, eu posso dizer todas as coisas que eu tenho. São nove vestidos, eu contei. Uma enorme coleção de camisetas, 30, da época em que eu as usava. Ainda adoro pijamas. 99% de chance de que, se eu estiver em casa, a qualquer hora do dia, estarei usando pijamas. Mas já não compro nenhum há alguns meses. Tenho uma caixa de cartas das quais eu nunca me desfiz e que incluem bilhetinhos trocados em sala de aula há 08 anos atrás. Guardo a agulha com a qual furei meu piercing no umbigo ainda no colégio (guardo?).

Descobri que não posso ter muitas coisas, pois acabo sempre usando as mesmas. O vestido azul de borboletas e o brinco de palhinha são dois bons exemplos, mas até que tenho feito um bom trabalho em aposentá-los. Este semestre resolvi me livrar das caixinhas de lente de contato, uma para cada visita a oftalmologista. Ao longo de oito anos juntei mais do que eu jamais iria usar. Até que tentei manter uma de cada cor, mas no final das contas acabei ficando mesmo com as velhas companheiras, aquelas branquinhas que vieram com os vidros de Renu. Os cigarros, dei para esconder de mim mesma, mesmo agora que todo mundo já sabe que eu fumo (sim, eu fumo, admito). Algumas coisas me arrependi de não ter guardado, como uma das provas de Formação da Sociedade Brasileira, ou o anel que foi alvo de disputa entre eu e meu primeiro grande amor.

A gente acaba sempre guardando o mesmo tipo de coisa, como as pessoas, e a gente as guarda mesmo muito tempo depois de não precisar mais delas.

Gosto de coisas para guardar coisas. Descobri que as canecas das cidades que visitei acabam servindo para isso. Uma delas, que já tinha sido remendada por um amigo, joguei no chão esses dias. Ela quebrou em muitos lugares, mas onde a cola Super Bond pegou, ela ficou. Guardei os cacos para me lembrar de alguma coisa que ainda não sei bem o que é.

Hoje em dia é fácil receber notícias por um grupo de emails e ao mesmo tempo não ter para quem ligar quando acontece algo de bom ou algo de ruim. São sempre aquelas mesmas duas caixinhas brancas que vieram com o Renu. Passa um monte de gente, mas no final ficam sempre aqueles mesmos velhos pijamas rasgados na gaveta. Aqueles que a gente tem que quase arrancar do corpo de vez em quando para jogar na máquina de lavar.

Conheci muita gente nesses últimos tempos, mas quase todo mundo foi para a sacola de coisas para o porteiro. As amigas de infância viraram amigas de outras pessoas. Algumas pessoas fizeram de tudo, mas mesmo assim a gente deixou elas partirem. Com alguns amigos não se canta mais música sertaneja. Vieram namorados, empregos, mestrados, planos... E eu acabo sempre ligando para as mesmas pessoas. A gente acaba tendo muitas roupas de festa e poucos pijamas. Às vezes isso me deixa triste, às vezes me faz bem. Eu gosto de pijamas.

Quando chega o fim do ano, dá vontade de jogar tudo fora e começar de novo, quando o ano foi ruim, ou de erguer um altar para cada ingresso de cinema e papel de bala, quando o ano foi bom. Faz parte. Desejo pijamas de festa a todos que passarem por aqui.

* Publicado originalmente em www.vivendocotidianamente.blogspot.com, em dezembro de 2008.

sexta-feira, dezembro 18, 2009

Mais um capítulo da mesma história

Ele adormeceu ao som de Cazuza e acordou ouvindo a previsão do tempo. O vento que invadia a sala através da pequena abertura da porta da varanda derrubara e quebrara, numa trágica coincidência, o porta-retrato que continha a foto da mais bela lembrança entre as que ele pretendia esquecer. De um salto, levantou do sofá onde estava pregado desde a madrugada. Sentou-se a mesa, papel e caneta a mão, e escreveu o que tinha em mente:
"Querida,
É muito complicado se relacionar. Isso se torna ainda mais difícil quando as histórias anteriores (de ambos) ainda não estão completamente resolvidas, as feridas não estão fechadas, os traumas não foram esquecidos... Junte-se isso a distância, e pronto, está armada a sinuca de bico em que nos metemos. Eu acho que você comete muitos equívocos... Avalia a situação de maneira maniqueísta e bipolar, tenta encaixar as pessoas nos seus paradigmas e modelos de certo e belo, sem procurar perceber que motivos levariam uma pessoa a mentir, ou a omitir, mesmo gostando muito e só querendo o bem da pessoa "enganada". Mas, depois de tantos dias pensando em tudo isso, eu encaro com normalidade e, inclusive, digo que qualquer pessoa envolvida numa situação parecida poderia ter o comportamento parecido, ou pior. Você só está sendo humana. (in)Perfeitamente humana.
Voltando a falar de relacionamentos: Eu me sentia cobrado, sim. Me sentia avaliado, sentia que você estava o tempo inteiro tentando mensurar a nossa "compatibilidade". "Ai, ele não faz isso, que eu adoro...”“Pensa desse modo sobre isso, o que eu rejeito..." Se você refletir bem sobre nossas conversas, vai perceber que elas estão recheadas de falas desse tipo, de sua parte. Obviamente, levando em consideração a complexidade de nossa língua e a falta de concretude da conversa virtual, poderia mesmo não ser cobrança, nem avaliação. Mas o foco, o que deveria nortear suas reflexões, é que estava ME parecendo cobrança. Ai você pode concluir que eu pensava assim porque pulo de cama em cama, adoro uma massagem no ego e queria que você continuasse pensando que sou um amor de pessoa, um homem "de verdade" e que não sou igual aos dai, apenas para satisfazer minha vaidade, alimentar a crença de que posso me fazer interessante para as mulheres que considero interessantes. Essa é uma linha  de raciocínio sofisticada, reconheço, e seria altamente plausível se, um pouco antes, você tivesse considerado a possibilidade de eu apenas estar me sentido cobrado, mesmo, num momento em que qualquer tipo de cobrança me remete a um relacionamento anterior, que eu quero esquecer. Aliás, cobrança, em qualquer esfera da vida, é algo que gera conflitos. Não importa se as intenções são boas, quando há cobranças há conflitos, e disso não poderíamos nos livrar.
Sabe, eu realmente não estive nem estou fechado para novas histórias. Mas eu estou falando de histórias, de breves (ou longos) casos de paixão intensa, de romance clássico, de onde surgem loucuras... E sei perfeitamente que não é todo tipo de gente que entende esse comportamento. Eu estava sendo o mais sincero que consigo ser ao lhe dizer que não me considero "galinha", e nunca duvide de que eu realmente queria você por perto. O grande problema do mundo é a dificuldade das pessoas em entender os diversos estágios intermediários entre o absolutamente certo e o completamente errado. Acredite, essa dificuldade, que é humana, explica quase todos os conflitos da humanidade. E é nela que você cai ao pensar que ou eu era um  rio largo em meio ao deserto, ao ser um cara muito bacana, sincero, monogâmico, ou seria um bicho safado que só se relaciona do ventre pra baixo. Há uma série de possibilidades entre os dois extremos, e eu não faço a menor questão de me enquadrar, de dizer para as pessoas onde exatamente eu estou. Vivemos numa época de GPS, radares, câmeras, todo tipo de controle e rastreamento, e essa lógica parece estar chegando as nossas vidas: deixe claro o que você é, qual é o seu "estilo", aonde você quer chegar, até onde você quer deixar alguém ir... Isso tudo é muito limitador, e talvez eu pense assim porque sou muito jovem. Mas o fato é que quando você me pede para dizer, quando questiona, procura se situar recebe e receberá sempre de mim respostas evasivas e pouco objetivas porque é essa área de minha existência que eu reservo para a pouca objetividade, para o incerto, para o não-racional. Eu realmente achei que seria o bastante para você tirar suas conclusões e fazer suas escolhas. Mas eu já sei que em certos momentos de nossa vida precisamos de mais certeza. Eu entendo, apesar de não concordar, por enquanto.
As suas recomendações quanto a minha conduta eu vou considerar, refletir sobre elas e, se for possível, tentar mudar pra melhor. Não me considero  totalmente coerente e sou bastante humano para assumir que não sou sincero durante 24 horas por dia, mas eu me esforço pra fazer o melhor. E eu vou adorar continuar contando com sua ajuda.
Desculpa a forma desconexa da resposta, eu estava me sentindo leve e em paz o bastante para te responder, então resolvi aproveitar o momento. Você sabe, normalmente eu prefiro ser mais seco, por vezes cruel, mas dessa vez não caberia. Eu só quero que fique tudo bem e que consigamos rir juntos outra vez... Talvez até dessa história toda, um dia... Quem sabe?

Um grande beijo de quem te admira, gosta muito, e  quer sempre por perto...”

- E TENHO DITO!
Pensou alto. Gritou. Dobrou a folha de forma apressada. Enfiou-a num envelope. Estava eufórico. Escrevera muito mais para si próprio do que para ela. Talvez por isso, estivesse se sentindo muito melhor.
Ele nunca entregou a carta. Eles nunca riram juntos. Naquela manhã ele tomou um banho, se vestiu, e foi para o trabalho, renovado. E assim, o ponto final de uma história marca o início da próxima. Sobrou a carta, documento histórico, enfiada num envelope sujo que o vento levou para debaixo do sofá.

sábado, dezembro 12, 2009

Sobre o tempo

Eu fico procurando algum acontecimento importante para discutir, algo que não tenha nada a ver comigo, mas acabo sempre voltando para o meu mundo particular. Não que eu não tenha me empolgado com a final do campeonato brasileiro ou não saiba que tem gente morrendo em enchentes, mas, sinceramente, entre as últimas coisas que causaram grande impacto na minha vida estão os relógios de uma relojoaria da esquina aqui de casa.

Os antigos têm aquele pêndulo que nos lembra o tempo todo que o tempo está passando. Em um deles, o ponteiro dá uma tremidinha cada vez que muda de lugar. Ele é um relógio confortável – dá a falsa impressão de que o tempo para, ainda que por alguns milésimos de segundo. Tempo para você conseguir respirar e colocar a cabeça no lugar. Mas não, a vida não para só porque você precisa de alguns minutos, ou alguns meses, para se recompor ou pensar melhor. O último relógio é a maior prova disso. O ponteiro dos segundos se move continuamente, sem nenhum movimento hesitante e em uma velocidade que faz você rever a sua concepção do que é um minuto realmente.

Eu fiquei observando esses relógios enquanto esperava que o meu próprio relógio fosse consertado – é um relógio barulhento e eu sempre ouço seu tique taque quando levanto o pulso até a altura da orelha para prender uma mecha de cabelo que insiste em cair no meu rosto. Mas é um tique taque que eu adoro. Tem algo de assustador mas também algo de excitante em saber que qualquer coisa pode acontecer, que ninguém sabe do futuro e que o tempo, ainda bem, não para.