segunda-feira, agosto 01, 2011

Dom de Iludir

Mesa de bar. Fui convidado a pensar sobre a malícia... Inicialmente, a malícia do povo brasileiro, aqui assumindo um tom pejorativo, que nos impede de seguir as regras e convenções e com isso ganhar maturidade institucional, ou seja, atingir a melhor forma real de democracia que a sociedade conseguiu desenvolver. Até aqui, discussão séria... Mas era mesa de bar. Logo fui tentado a corrigir o rumo da prosa pra um tema muito mais boêmio: a malícia feminina.

Lembro bem quando o tema me tomou a mente pela primeira vez, ouvindo Noel Rosa na voz de Caetano: “Pra quê mentir se ainda não tens a malícia de toda mulher? Pra quê mentir se eu sei que gostas de outro, que te diz que não te quer?!”. Ao qual o próprio Caetano respondeu, mais tarde, dizendo que “Você diz a verdade, a verdade é seu dom de iludir. Como pode querer que a mulher vá viver sem mentir?”. Desde então, criei o problema em minha mente e desde aquele dia nunca mais consegui esquecê-lo: do que se trata a tal “malícia de toda mulher”?

O “dom de iludir” é tema antigo. No paraíso, Eva usou de toda sua malícia para convencer Adão a provar do fruto proibido ( e é por causa dela que trabalhamos até hoje). Desde então, exemplos de mulheres que se sobrepõe, com delicadeza e jogo de cintura, aos desmandos de déspotas e maridos cruéis para atingir seus objetivos não são raros. A linha do tempo separa em uma distância considerável Eva de Cleópatra ou Evita, por exemplo. Entretanto, há uma condição presente em qualquer contexto de manifestação da malícia feminina: a de oprimida. As mulheres da bíblia, as de Noel Rosa e, porque não, de Caetano, viveram todas em uma condição de submissão ao homem: pai, marido, chefe, criador...

A malícia se configura, portanto, numa tática de sobrevivência: as mulheres desenvolveram uma forma alternativa de negociar suas vontades, que foge ao uso da força, e perpassa pela sensibilidade e poder de persuasão. Retratado nas artes por mãos masculinas, esse método de convencimento é transfigurado, descrito como “dom de iludir”. A malícia de toda mulher é conseqüência da opressão. Neste sentido, a expressão malícia perde o tom pejorativo e ganha conotação de requinte, inteligência e estilo. Subjuga o poder decisório historicamente repousado nas mãos dos homens, infiltrando-se sobre as normas como a água entre as ranhuras de uma pedra do rio. O toque, o olhar, a voz branda, os olhos marejados... E pronto, tudo lhe será dado. Há quem diga que o único crime perfeito é a traição de uma mulher magoada... Malícia, pura malícia.

E nos dias de hoje? Vivemos na época em que, sem dúvidas, as mulheres experimentam a maior liberdade cedida a elas em todos os tempos. É cada dia mais comum ver mulheres que falam firme, batem na mesa e ditam as normas, em todos os ambientes. De donas de casa que “edificam o seu lar” a chefes de grandes corporações, o comportamento feminino sofreu fortes mudanças. Há quem diga que a malícia feminina, aliada ao poder de decisão conferido a elas, fizeram destas os seres mais evoluídos do planeta. E quem há de negar? Resta a nós, pobres ultrapassados homens “inocentes”, observarmos atentos. Ou, fazermos arte, novamente. Eu sou refém. Sejamos!