quarta-feira, outubro 13, 2010

Ensaio

Estou em casa sem trabalhar há uma semana e, como me disseram recentemente, cabeça vazia é oficina do diabo. Ontem eu disse a minha psicóloga (é, eu tenho uma) que odiava meu trabalho e que estava com vontade de largar tudo e fugir para Bali. Ela começou a rir e me perguntou: “você foi muito ao cinema esses dias?”. Não, na verdade eu não fui assistir a “Comer rezar e amar”, que era o que ela queria saber, mas passei 72 horas em frente à televisão assistindo à maratona de Grey’s Anatomy, o que me fez considerar seriamente se eu não deveria ter feito medicina, da mesma forma que eu pensava em como seria legal se existissem vampiros quando assistia Buffy aos 15 anos ou como eu e minha irmã queríamos ser agentes do FBI até os 12 anos.

A verdade é que todo o meu imaginário sobre o mundo do trabalho foi construído em cima de séries como Arquivo X, assim como o meu imaginário sobre o amor é uma colagem dos filmes românticos dos anos 90. Eu li na internet um dia desses que uns pesquisadores da Austrália resolveram expor um grupo de casais a uma overdose de comédias românticas e assim descobriu que ver muita balela hollywoodiana aumenta o número de rompimentos e divórcios porque eleva as expectativas amorosas das pessoas. Sendo assim, não é de se espantar que eu tenha uma psicóloga. Eu sempre desconfiei que a culpa dos meus problemas mentais era da televisão. E eu sou uma cinéfila descontrolada. E também uma leitora de romances de mulherzinha convicta.

Eu comecei lendo suspense. Aos doze anos já tinha lido todos os livros da Agatha Christie, o que me fez escrever uns contos péssimos de suspense. Tive a fase dos romances históricos, o que serviu para suprir as lacunas geradas pelo meu sono incontrolável durante as aulas da quinta série até o fim do colégio (na verdade eu durmo até hoje se tiver que ficar ouvindo alguém discursar por mais de 15 minutos antes do meio-dia). Depois fiquei louca por Stephen King e suas histórias fantásticas. Noites e noites sem dormir por causa de Cemitério Maldito e A Coisa, e um frenesi descabido por causa de O Talismã. Não vou ficar aqui descrevendo minha trajetória literária pop, mas em algum momento dos meus vinte e poucos anos eu descobri a Marian Keyes e aí o estrago estava feito. Ela escreve sobre mulheres de vinte e poucos anos que estão tentando descobrir quem são e o que querem da vida e do amor, impossível não me identificar. Daí descobri todo um nicho desses romances e devorei um atrás do outro. E o pior é que eu entro completamente nas histórias. Eu virei essa madrugada lendo um romance de mulherzinha e eu simplesmente senti tudo o que a personagem principal sentia. Dor, medo, dúvida, desejo, paixão incontrolável, ódio da melhor amiga que escondeu dela a volta de seu ex-namorado anos atrás, e tenho bastante certeza de que, ao final do livro, quando ela beija o marido e os dois são felizes para sempre enquanto ela é uma fotógrafa bem-sucedida em New York, eu estava sorrindo e suspirando feito uma idiota.

Eu sei que tudo isso parece uma grande idiotice, mas eu tenho um ótimo argumento para me defender: ler e assistir sobre os conflitos de cada um, suas incertezas, seus limites, ainda que esse “cada um” seja composto por personagens fictícios, é uma forma de buscar uma compreensão maior da condição humana. Eu sei que isso soa completamente ridículo mas é nisso que eu realmente acredito. É claro que eu não assisti a Uma Linda Mulher umas quinze vezes para buscar um entendimento melhor sobre a condição humana. Todo mundo gosta desse filme por motivos básicos e simples: romance, compras e, principalmente, esperança. Mas a reflexão é uma coisa que acaba vindo como efeito colateral, nem que seja para chegar à conclusão de que contos de fadas não existem. A gente se coloca no lugar das pessoas, seja uma história real ou um filme, e tenta entendê-las. A gente se pergunta se todo mundo é assim. Se existem sentimentos universais. Se todo mundo tem dentro de si a mesma medida de bondade e maldade. Se existe mesmo bom e ruim. Se sonhos são possíveis. Sobre até onde somos capazes de ir, seja movidos por ódio, medo ou amor. Não importa se estamos falando de uma aranha gigante alienígena assassina ou de uma tragédia cruel que vimos no jornal. Tudo isso tem o poder de nos fazer refletir e assim contribuir para a construção daquilo que somos e daquilo em que acreditamos.

Minha psicóloga me disse esses dias que o ato de ensaiar uma apresentação não diminui nossa insegurança na hora da apresentação de fato simplesmente porque fizemos mais uma revisão do conteúdo, mas porque cria no cérebro a sensação de déjà-vu, de que nós já fizemos aquilo antes, e assim tudo fica mais fácil. Ela me sugeriu então ensaiar toda vez que eu estivesse receosa ou insegura – ensaiar conversas difíceis com os pais ou o namorado, ensaiar entrevistas de emprego, ensaiar a entrada na igreja, qualquer coisa. Logo depois eu li em uma revista que os sonhos nos ajudam a aprender comportamentos. Para mim a ficção também é assim. Não são só um monte de idéias e valores loucos que entram no seu cérebro sem nenhum filtro. É como um ensaio. Você se vê na pele da Meg Ryan ou do Nicholas Cage apaixonados, ou então pensa em como seria ser o Dr. Shepherd na sala de operações, e quando você chega lá, guiado por tudo que você aprendeu com seus pais, suas amigas de escola, seus professores, a revista Atrevida, e, mais especificamente no meu caso, as aulas de antropologia das emoções e o filme Cidades dos Anjos (que é uma refilmagem), pensa: “Ah, então é assim...”.

sexta-feira, outubro 01, 2010

Íbis*

Ele nunca notara o ônibus tão lento. Os joelhos movimentavam-se freneticamente e sem a sua ordem, como se algo os tivesse dado vida própria, no pequeno espaço disponível entre as poltronas sujas do antigo coletivo executivo. As sinaleiras dos carros nas ruas piscavam diferentes tons de laranja, numa tentativa inconseqüente de sinalizar uma mudança de faixa completamente inútil em meio àquele congestionamento sem fim. Ele tentava encaixar as piscadelas dos veículos entre os segundos passados; com o tempo, conseguiu encontrar uma que piscava exatamente uma vez por segundo. A cada sessenta piscadelas, ele estava mais um minuto atrasado.
E aquela camiseta amarela? Ele nunca usava amarelo, sentia que o deixava sem vida. Além disso, estava muito apertada, como se sua intenção fosse mostrar músculos que, no seu caso, não deveriam ser motivo de orgulho. A senhora do trabalho disse que ele estava bonito. Isso era bom, apesar dela gostar de praticamente tudo que ele vestia (ou, pelo menos, de sempre falar que tinha gostado). Em meio ao exame da blusa, notou que tinha exagerado no perfume. Estar cheiroso é bom, mas causar asfixia normalmente não é bem visto. Perfume demais se não ajuda, atrapalha. Abriu a janela pra “gastar” o aroma. Ah, mas que bela sinfonia de buzinas podia-se ouvir lá fora...
Voltou-se para dentro do ônibus e viu pessoas amarrotadas e descabeladas, dormindo tranquilamente durante o congestionamento. Para elas, tratava-se apenas de mais uma volta de um dia de trabalho. O que fazia ele ali, banho tomado, camiseta apertada, completamente embriagado de perfume, ansioso como um adolescente? Mãos trêmulas, ensaiava as falas. Sabia que ao fim não falaria nada daquilo. Quando pensava nas coisas que haviam acontecido na ultima semana e o levaram a estar ali, sentia um quê de ridículo e absurdo naquilo. Teve inclusive vontade de descer e voltar para casa. Desistiu da idéia quando concluiu que fugir àquela altura deixaria tudo ainda mais absurdo (e ridículo).
Em seguida, chegou à conclusão inquestionável de que os sinais vermelhos estavam colocados estrategicamente do modo mais eficaz possível para o objetivo de lhe atrapalhar. Ele era o único indivíduo no ônibus que tinha pressa. Ele e os seus joelhos, agora com vida própria e movimentos cada vez mais frenéticos. Seria possível levantar? “É só chegar, pegar o que é meu e ir embora. ‘Eu sou o homem, pele solta sobre o músculo’**!”, pensava e ouvia, no mp4 Player que tornou todo aquele suplício suportável.
Desceu do ônibus cambaleando. Perdeu-se entre as ruas. Começou a correr e logo constatou que, de fato, todo o perfume havia evaporado. Encontrou o prédio. Era bonito, alto, imponente. Os pensamentos eram confusos. Ele não entrou de primeira. Coçou a cabeça. Quis desistir pela última vez. Temeu pelos seus rins. Comprou uma água de côco. A camisa amarela apertando. Os joelhos rebelando-se. A voz completamente trêmula. O suor escorrendo pela testa. Resolveu fazer logo esse “parto”.
Adentrou. Ela era azul. O mundo era azul. Logo tudo se tornou azul. Não disse nada do planejado. Gaguejou. Ela sorriu. Todo o resto perdeu importância. Desde aquele momento, começou a amar. A ela, o azul, e o acaso. Tudo que veio em seguida é inevitável conseqüência.

* Os íbis são aves pernaltas com pescoço longo e bico comprido e encurvado para baixo. São na maioria dos casos animais gregários, que vivem e se alimentam em grupo. De acordo com a tradição popular em alguns países, o íbis é a última ave a desaparecer antes de um furacão e a primeira a surgir depois da tempestade passada.