sexta-feira, outubro 01, 2010

Íbis*

Ele nunca notara o ônibus tão lento. Os joelhos movimentavam-se freneticamente e sem a sua ordem, como se algo os tivesse dado vida própria, no pequeno espaço disponível entre as poltronas sujas do antigo coletivo executivo. As sinaleiras dos carros nas ruas piscavam diferentes tons de laranja, numa tentativa inconseqüente de sinalizar uma mudança de faixa completamente inútil em meio àquele congestionamento sem fim. Ele tentava encaixar as piscadelas dos veículos entre os segundos passados; com o tempo, conseguiu encontrar uma que piscava exatamente uma vez por segundo. A cada sessenta piscadelas, ele estava mais um minuto atrasado.
E aquela camiseta amarela? Ele nunca usava amarelo, sentia que o deixava sem vida. Além disso, estava muito apertada, como se sua intenção fosse mostrar músculos que, no seu caso, não deveriam ser motivo de orgulho. A senhora do trabalho disse que ele estava bonito. Isso era bom, apesar dela gostar de praticamente tudo que ele vestia (ou, pelo menos, de sempre falar que tinha gostado). Em meio ao exame da blusa, notou que tinha exagerado no perfume. Estar cheiroso é bom, mas causar asfixia normalmente não é bem visto. Perfume demais se não ajuda, atrapalha. Abriu a janela pra “gastar” o aroma. Ah, mas que bela sinfonia de buzinas podia-se ouvir lá fora...
Voltou-se para dentro do ônibus e viu pessoas amarrotadas e descabeladas, dormindo tranquilamente durante o congestionamento. Para elas, tratava-se apenas de mais uma volta de um dia de trabalho. O que fazia ele ali, banho tomado, camiseta apertada, completamente embriagado de perfume, ansioso como um adolescente? Mãos trêmulas, ensaiava as falas. Sabia que ao fim não falaria nada daquilo. Quando pensava nas coisas que haviam acontecido na ultima semana e o levaram a estar ali, sentia um quê de ridículo e absurdo naquilo. Teve inclusive vontade de descer e voltar para casa. Desistiu da idéia quando concluiu que fugir àquela altura deixaria tudo ainda mais absurdo (e ridículo).
Em seguida, chegou à conclusão inquestionável de que os sinais vermelhos estavam colocados estrategicamente do modo mais eficaz possível para o objetivo de lhe atrapalhar. Ele era o único indivíduo no ônibus que tinha pressa. Ele e os seus joelhos, agora com vida própria e movimentos cada vez mais frenéticos. Seria possível levantar? “É só chegar, pegar o que é meu e ir embora. ‘Eu sou o homem, pele solta sobre o músculo’**!”, pensava e ouvia, no mp4 Player que tornou todo aquele suplício suportável.
Desceu do ônibus cambaleando. Perdeu-se entre as ruas. Começou a correr e logo constatou que, de fato, todo o perfume havia evaporado. Encontrou o prédio. Era bonito, alto, imponente. Os pensamentos eram confusos. Ele não entrou de primeira. Coçou a cabeça. Quis desistir pela última vez. Temeu pelos seus rins. Comprou uma água de côco. A camisa amarela apertando. Os joelhos rebelando-se. A voz completamente trêmula. O suor escorrendo pela testa. Resolveu fazer logo esse “parto”.
Adentrou. Ela era azul. O mundo era azul. Logo tudo se tornou azul. Não disse nada do planejado. Gaguejou. Ela sorriu. Todo o resto perdeu importância. Desde aquele momento, começou a amar. A ela, o azul, e o acaso. Tudo que veio em seguida é inevitável conseqüência.

* Os íbis são aves pernaltas com pescoço longo e bico comprido e encurvado para baixo. São na maioria dos casos animais gregários, que vivem e se alimentam em grupo. De acordo com a tradição popular em alguns países, o íbis é a última ave a desaparecer antes de um furacão e a primeira a surgir depois da tempestade passada.

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