terça-feira, novembro 23, 2010

Sobre Ícaro e as máscaras de oxigênio

Sim, ele caiu. Teve uma idéia brilhante, construiu com maestria as asas planejadas, utilizou o melhor material que dispunha. Mas caiu, e morreu. Ícaro morreu porque tinha que morrer. Porque o lugar dele era aqui embaixo. O nosso lugar é aqui embaixo. Apesar da nobreza da idéia, Ícaro foi inocente ao acreditar que poderia ir além e, de certa forma, punido por ter sido genial. Ao pensar nessa antiga história, enquanto me arrumava na pequena poltrona dentro do Airbus A-321 que fazia um vôo comercial pela TAM, indaguei: “o que estamos fazendo? Vocês esqueceram do Ícaro?”.
A aviação comercial cresceu assustadoramente. O acesso dos brasileiros aos vôos domésticos talvez tenha sido a maior revolução de que já tivemos notícias em relação a meios de transporte em massa. Os aviões são meios de transporte sabidamente seguros. Contudo, meus caros, eu tenho que admitir que em nenhum momento sinto-me confortável dentro de um “bichinho” daqueles. Isso deveria ser óbvio, mas não é simplesmente pelo fato de que as pessoas, dizia uma amiga, acostumadas a voar periodicamente, de fato esquecem o quanto é desafiador romper os céus dentro de uma caixa de metal.
Decerto que algumas vezes em minha vida me senti punido por “pensar demais”. Voar é só mais uma dessas situações. A expressão de tranqüilidade nas faces das pessoas sentadas ao meu lado me incomoda. Os papos cotidianos me causam certa revolta. Voar deveria ser um momento senão de respeito, no mínimo de reflexão. Estamos, cada decolagem, rompendo uma barreira natural, e isso deveria gerar conseqüências. Sei que de certa forma a conseqüência se manifesta, ainda que raramente, mas o momento deveria ser de respeito porque a resposta da natureza pode acontecer em qualquer vôo.
Estou eu lá, enfim, acomodado. Ouvindo música. As instruções de segurança deixam clara a gravidade da transcendência de um vôo. E mesmo assim as pessoas não a notam. O que pode ser mais assustador do que estar dentro de um objeto mais pesado que o ar, com uma pressão interna maior que a externa? Como é possível sorrir ao ser informado que sua poltrona é flutuante? Eu não quero saber que é possível flutuar com ela. Eu não quero flutuar! A idéia de flutuar em meio ao oceano frio e vazio, vendo barbatanas de tubarões circulando a tal poltrona sempre me vem nesse momento e a sensação passa longe do confortável. Considerando que a única emergência para qual não há medidas de segurança – queda do avião e morte imediata de todos os ocupantes – é ignorada nessas instruções, é fácil concluir que a conseqüência lógica dos avisos de segurança deveria ser o pânico geral. É incrível que isso não aconteça.
E por que não acontece? Essa era uma boa questão. Certamente me ajudaria a ocupar a mente durante as duas horas e meia de vôo. Pedi a primeira cerveja (finalmente descobri que prefiro voar TAM, como a maioria das pessoas. Não pelo conforto óbvio de seus aviões, mas sim por ser a única companhia que me oferece a vantagem de ficar bêbado “de grátis”. Para além da vantagem econômica, isso faz a turbulência parecer montanha russa), e me pus a pensar. Trata-se, obviamente, de um exercício mental fantástico. O cenário pintado acima assusta a qualquer ser humano em sã consciência. A qualquer momento máscaras de oxigênio podem cair a sua frente, lhe oferecendo a única alternativa de continuar respirando, e isso é por si só aterrorizante. Se todo mundo pensasse no que pode dar errado num vôo, o contexto seria de tensão, no mínimo. As possibilidades de problemas são tão amplas quanto as direções possíveis de uma turbulência (lembro-me de como achei diferente a sensação de chacoalhar para cima, para baixo, esquerda, direita e diagonais (!), na ocasião do meu primeiro vôo).
O fato é que as pessoas simplesmente não pensam nisso. Levadas pelo cotidiano, pelos problemas “em solo”, ou até mesmo por uma boa companhia, transformam o ambiente interno de um avião em algo completamente descolado de seu ambiente exterior e tudo que ele representa: perigo. Como Ícaro, que viu na beleza do sol uma razão convincente para continuar subindo, nós enxergamos no ambiente agradável criado dentro dos aviões um motivo razoável para ficarmos tranqüilos. É um artifício social, rapidamente entendido por todos que voam cotidianamente, e acabei chegando à conclusão de que o ambiente forjado é necessário para vôos seguros. Como todos os acordos tácitos impostos pela sociedade, tem como fim último evitar o caos. Nesse caso, um caos multiplicado por 11 mil pés de altura...
Entretanto, apesar de sua relevância, trata-se de um acordo coletivo extremamente frágil. Isso se torna claro quando um passageiro resolve não aceita-lo. Qualquer um que demonstre desespero dentro de um avião acaba destemperando outros tantos, se não todo o resto. Quando alguém se toca que está a 11 mil pés de altitude e resolve tentar alertar os outros, a reação geral é de desconforto, típica de quebras unilaterais de um acordo coletivo velado. Se todos ficam mais tranqüilos, esquecer as possibilidades de tragédia se torna mais fácil.
Uma garotinha começou a chorar, ao meu lado. Não era fome, nem sede, nem frio, então aquele choro começou a me lembrar do enorme risco de morte que eu sofria naquele momento, e o meu maior desejo passou a ser que ela se calasse. “Entupam a sua boca com algodão, mas façam-na parar!”, pensamos eu e todos os outros 200 passageiros... A garotinha representa, ali, a quebra do acordo. Engraçado como o desconforto causado nessas situações nos faz esquecer outros fatos sociais importantes: era uma garotinha, indefesa, chorando. Quando pisei em solo, senti remorso por ter enfiado tantos tufos de algodão em sua boca, em meus pensamentos. Uma pessoa normal deveria ter ficado com pena dela.
A essa altura, depois da quarta latinha, eu já me sentia muito melhor. Vi o farol da Barra e pensei que não adianta querer alertar aos outros. Eu que preciso entender e participar do acordo. Como fez Ícaro, olhar para cima, e não para baixo. Beber a cerveja, curtir o sobe-desce e parar de olhar fixamente para a turbina. Afinal, se a natureza resolver me punir como fez a Ícaro, ao menos terei a chance de conhecer as famosíssimas máscaras de oxigênio. E minhas asas nem são de cera... Que a natureza espere mais um pouco pela minha nobre alma. Ah, como é bom pisar no chão!

 
p.s.: Após escrever esse texto, descobri que os passageiros americanos concordam comigo.

Um comentário:

Anônimo disse...

hehehehe...muito bom!
Você esqueceu de comentar sobre o zumbido..rs