sábado, setembro 10, 2011

Euclides, Luiz e o civismo

Poucas músicas me emocionam tanto quanto  “Pau de Arara” , do gênio Gonzagão. Em parte porque lembra a história de minha família; mas também por descrever o drama de milhões de brasileiros que rumaram para o sul e construíram esse país. No entanto, o sul-maravilha insiste em colocar a nossa região como origem de todos os males da terra brasilis. Eu penso diferente. Não apenas por ser nordestino, mas simplesmente por me dar o direito de pensar um pouco sobre o tema, sem me render aos conceitos prontos sobre a origem da sociedade brasileira que achamos por aí.

O nordestino é, em grande parte, sertanejo. E o sertanejo é, antes de tudo, um forte. Eu acho que Euclides da Cunha quis dizer muitas coisas com o termo forte, e essas vão além da força física. O nordestino é, em geral, um nobre. Não no sentido medieval, e sim no de defesa de valores. Ele os tem definidos e arraigados, aos quais a necessidade de sobrevivência não consegue sobrepor. É o “Paraíba” que puxa a peixeira se alguém xinga sua mãe ou lhe chama de corno, mas também é o cidadão que na falta de comida privilegia mulheres e crianças; que trabalha a mais para compensar o cansaço dos mais idosos; que não aceita esmola nem roubo... Um respeito ao próximo e as necessidades alheias que nos dias de hoje nos parece incomum.

Não quero vender aqui um moralismo barato. Longe disso. Mas os valores que cito caminham numa direção específica: a que define o conceito de “civismo”. Sim, porque poucos de vocês hão de discordar de que o grande mal desse nosso país é a completa ausência de noções de civismo em todos os níveis hierárquicos, econômicos e sociais. Senão vejamos. Falta-nos educação, no sentido formal. Faltam mais engenheiros, arquitetos, advogados, sociólogos e filósofos. Faltam mesmo. Mas os que nós temos de “melhor”, que ocupam os cargos de maior relevância, nos dão constantemente mostras de sua completa ignorância em relação ao civismo, considerando este não apenas como “amor a pátria”, mas no sentido mais amplo, de consciência coletiva, de bem comum para viver em sociedade. Talvez aleguem falta de renda, e é de fato considerável a fatia da população completamente a margem do progresso econômico dos últimos anos. Contudo, os absurdos salários pagos aos poderes Executivo e Judiciário não impedem o completo descaso com o dinheiro público, que deveria ser utilizado para o “bem comum”.

A ausência de civismo vai além desses exemplos mais emblemáticos e midiáticos. Ela perpassa o nosso dia-a-dia. É o cara que fura a fila do banco; que estaciona em vaga de idoso; que não cede o lugar da gestante e do idoso no ônibus; que gasta todo o seu salário em carros que se transformam em trio-elétricos e não respeita os horários em que o som em determinado volume é proibido. A questão aqui vai além de “bom” e “mau”. O conceito é objetivo: não há compreensão da necessidade da existência dessas regras. Não há percepção de que as leis de boa convivência são uma necessidade social. É um problema de socialização dos indivíduos, ou seja, é um problema de toda a sociedade e não apenas dos “maus”.

E ai é que voltamos ao nosso problema de início: se o grande mal é a falta de civismo, esse mal não veio do nordestino. Em algum momento, lá por baixo, a noção de civismo inerente ao nordestino se perdeu. O nosso povo é descaracterizado pelo ambiente hostil e acaba por deixar alguns desses valores de lado. Como somos fortemente influenciados pela mídia oriunda do sul, aconteceu que os grandes centros urbanos nordestinos reproduziram o problema da falta de civismo. Não sei quando, nem onde, nem como isso acontece (isso aqui não é artigo científico), mas é fácil defender esse ponto de vista. Quem discorda de mim, visite o sertão, converse com as pessoas. Ouça. E depois me conte. O sertanejo de Luiz Gonzaga e Euclides da Cunha ainda está lá, sobrevive, e tem muito mais a nos ensinar do que a aprender conosco.


2 comentários:

Juan Carlos disse...

Bom artigo. Transmite o correto sentido moral e cívico da famosa frase de Euclides da Cunha.

Betânia disse...

Ouvir e ler comentários pejorativos sobre o nordestino me causam tamanha revolta e angústia. A revolta não é apenas por ser nordestina, mas principalmente por ser defensora de uma sociedade despida de preconceito. A angústia é por não compreender a origem do preconceito. Bem verdade que "os seres superiores" não necessitam de fundamento para tanto, mas é que há um mínimo de incongruência em desmerecer um povo tão forte, em todos os sentidos que este sentido possa oferecer. Brilhante e eloquente a forma como assunto foi abordado! Continue a nos presentear com seus escritos! Betânia