sexta-feira, dezembro 18, 2009

Mais um capítulo da mesma história

Ele adormeceu ao som de Cazuza e acordou ouvindo a previsão do tempo. O vento que invadia a sala através da pequena abertura da porta da varanda derrubara e quebrara, numa trágica coincidência, o porta-retrato que continha a foto da mais bela lembrança entre as que ele pretendia esquecer. De um salto, levantou do sofá onde estava pregado desde a madrugada. Sentou-se a mesa, papel e caneta a mão, e escreveu o que tinha em mente:
"Querida,
É muito complicado se relacionar. Isso se torna ainda mais difícil quando as histórias anteriores (de ambos) ainda não estão completamente resolvidas, as feridas não estão fechadas, os traumas não foram esquecidos... Junte-se isso a distância, e pronto, está armada a sinuca de bico em que nos metemos. Eu acho que você comete muitos equívocos... Avalia a situação de maneira maniqueísta e bipolar, tenta encaixar as pessoas nos seus paradigmas e modelos de certo e belo, sem procurar perceber que motivos levariam uma pessoa a mentir, ou a omitir, mesmo gostando muito e só querendo o bem da pessoa "enganada". Mas, depois de tantos dias pensando em tudo isso, eu encaro com normalidade e, inclusive, digo que qualquer pessoa envolvida numa situação parecida poderia ter o comportamento parecido, ou pior. Você só está sendo humana. (in)Perfeitamente humana.
Voltando a falar de relacionamentos: Eu me sentia cobrado, sim. Me sentia avaliado, sentia que você estava o tempo inteiro tentando mensurar a nossa "compatibilidade". "Ai, ele não faz isso, que eu adoro...”“Pensa desse modo sobre isso, o que eu rejeito..." Se você refletir bem sobre nossas conversas, vai perceber que elas estão recheadas de falas desse tipo, de sua parte. Obviamente, levando em consideração a complexidade de nossa língua e a falta de concretude da conversa virtual, poderia mesmo não ser cobrança, nem avaliação. Mas o foco, o que deveria nortear suas reflexões, é que estava ME parecendo cobrança. Ai você pode concluir que eu pensava assim porque pulo de cama em cama, adoro uma massagem no ego e queria que você continuasse pensando que sou um amor de pessoa, um homem "de verdade" e que não sou igual aos dai, apenas para satisfazer minha vaidade, alimentar a crença de que posso me fazer interessante para as mulheres que considero interessantes. Essa é uma linha  de raciocínio sofisticada, reconheço, e seria altamente plausível se, um pouco antes, você tivesse considerado a possibilidade de eu apenas estar me sentido cobrado, mesmo, num momento em que qualquer tipo de cobrança me remete a um relacionamento anterior, que eu quero esquecer. Aliás, cobrança, em qualquer esfera da vida, é algo que gera conflitos. Não importa se as intenções são boas, quando há cobranças há conflitos, e disso não poderíamos nos livrar.
Sabe, eu realmente não estive nem estou fechado para novas histórias. Mas eu estou falando de histórias, de breves (ou longos) casos de paixão intensa, de romance clássico, de onde surgem loucuras... E sei perfeitamente que não é todo tipo de gente que entende esse comportamento. Eu estava sendo o mais sincero que consigo ser ao lhe dizer que não me considero "galinha", e nunca duvide de que eu realmente queria você por perto. O grande problema do mundo é a dificuldade das pessoas em entender os diversos estágios intermediários entre o absolutamente certo e o completamente errado. Acredite, essa dificuldade, que é humana, explica quase todos os conflitos da humanidade. E é nela que você cai ao pensar que ou eu era um  rio largo em meio ao deserto, ao ser um cara muito bacana, sincero, monogâmico, ou seria um bicho safado que só se relaciona do ventre pra baixo. Há uma série de possibilidades entre os dois extremos, e eu não faço a menor questão de me enquadrar, de dizer para as pessoas onde exatamente eu estou. Vivemos numa época de GPS, radares, câmeras, todo tipo de controle e rastreamento, e essa lógica parece estar chegando as nossas vidas: deixe claro o que você é, qual é o seu "estilo", aonde você quer chegar, até onde você quer deixar alguém ir... Isso tudo é muito limitador, e talvez eu pense assim porque sou muito jovem. Mas o fato é que quando você me pede para dizer, quando questiona, procura se situar recebe e receberá sempre de mim respostas evasivas e pouco objetivas porque é essa área de minha existência que eu reservo para a pouca objetividade, para o incerto, para o não-racional. Eu realmente achei que seria o bastante para você tirar suas conclusões e fazer suas escolhas. Mas eu já sei que em certos momentos de nossa vida precisamos de mais certeza. Eu entendo, apesar de não concordar, por enquanto.
As suas recomendações quanto a minha conduta eu vou considerar, refletir sobre elas e, se for possível, tentar mudar pra melhor. Não me considero  totalmente coerente e sou bastante humano para assumir que não sou sincero durante 24 horas por dia, mas eu me esforço pra fazer o melhor. E eu vou adorar continuar contando com sua ajuda.
Desculpa a forma desconexa da resposta, eu estava me sentindo leve e em paz o bastante para te responder, então resolvi aproveitar o momento. Você sabe, normalmente eu prefiro ser mais seco, por vezes cruel, mas dessa vez não caberia. Eu só quero que fique tudo bem e que consigamos rir juntos outra vez... Talvez até dessa história toda, um dia... Quem sabe?

Um grande beijo de quem te admira, gosta muito, e  quer sempre por perto...”

- E TENHO DITO!
Pensou alto. Gritou. Dobrou a folha de forma apressada. Enfiou-a num envelope. Estava eufórico. Escrevera muito mais para si próprio do que para ela. Talvez por isso, estivesse se sentindo muito melhor.
Ele nunca entregou a carta. Eles nunca riram juntos. Naquela manhã ele tomou um banho, se vestiu, e foi para o trabalho, renovado. E assim, o ponto final de uma história marca o início da próxima. Sobrou a carta, documento histórico, enfiada num envelope sujo que o vento levou para debaixo do sofá.

4 comentários:

Larissa disse...

Como tem muito tempo que não entro no orkut, eu não sabia que você tinha um blog. Sempre soube, porém, que você escrevia muito bem. E adorei saber disso aqui. Tô chegando em Salvador no sábado!!

Vamo se ver???

Queria tomar uma com você e saber da sua vida!!!

Beijo enorme

Larissa disse...

Escrevi esse comentário achando que era Fernanda. Não quer dizer que eu não ache que você escreve bem, mas só depois de ler todo o blog, eu entendi que não era dela. hahaha

Beijo pra você também, e, se quiser, sai com a gente.

Beijo pra você também!

Rafael Arantes disse...

Querido amigo,

me senti plenamente contemplado com seu texto, principalmente sobre a imprevisibilidade do comportamento humano e sobre a liberdade (que devemos lutar para manter) que isso nos traz. Por que sempre temos que nos enquadrar em certos padrões de apreciação se, muitas vezes, nem nós sabemos o que somos ou o que queremos? Na próxima esquina sempre pode vir o novo e o incerto...

No entanto, não podemos ignorar que as pessoas esperam de nós e que ao nos relacionarmos não podemos jamais olhar apenas para o nosso umbigo. Devemos exercitar nossa empatia, ou seja, nos colocar no lugar do outro para tentarmos balizar melhor nosso comportamento.

O complexo é a mediação entre as duas situações; elemento que, por mais clichê que seja, é sempre fundamental: o equilíbrio, a síntese dialética. Como nos fazer livres, humanos, imprevisíveis e intensos sem se mostrar irresponsável e egoísta frente ao outro? É por isso que Mário Quintana disse que se vc não está disposta a fazer alguém sofrer não o dedique amor. O amor cria esperanças e expectativas e isso cria cerceamentos e mágoas.

Frente à impresibilidade do comportamento humano, que se desenrola como numa teia, na qual as consequências dos nossos atos nos são incontroláveis, Hannah Arendt sugere que tenhamos dois tipos de comportamento: O ato de prometer e o ato de perdoar. Prometer para nos fazer um pouco mais sólidos e confiáveis, perdoar para que consigamos ir além depois de consequências imprevistas e não fiquemos preso às nossas primeiras ações.

Assim, a vida segue, as pessoas caminham e amor se renova...

Tiago Lorenzo disse...

Isso aí tudo que Rafa disse. (Sem a parte da síntese dialética e de Hannah Arendt).


Belo texto, contudo.

Muito belo.

Abraços.

Tiago