sábado, setembro 08, 2007

O Extraordinário

Ele acordou. A cabeça rodava... ficara até as primeira horas da manhã lendo contos, e bebendo vinho. De um salto, levantou-se da cama segurando a jaqueta com a mão direita, e na esquerda o guarda-chuva. Tinha algo urgente a resolver, algo que não poderia esperar nem mais um segundo. Agora, depois de todo esse tempo pensando a respeito da natureza humana, só enxergava insetos andando pelas ruas. Não, ele não era como eles. Ele era maior, melhor. Ele era, de fato, extraordinário. E era isso que deveria provar imediatamente.
Dirigiu-se apressado até o supermercado. Uma chuva pesada, dura, castivaga seu pobre guarda-chuva como se quisesse avisá-lo do erro que cometeria. "Erros são coisas de insetos. Desses insetos!", ele pensava. Um idéia fixa lhe tomava toda a atenção. Não se pode humilhar seres extraodinários como aquele gerentezinho de supermercado havia feito anteontem. E ele demorara dois dias pra se decidir, talvez por ser mais piedoso do que deveriam ser os homens de sua classe. Mas agora, tudo estava tão claro quanto o céu em dia de sol. "Chego, mato ele e quem mais se meter e depois, a Glória! Ah, a Glória!" Dizia a si mesmo num tom de voz elevadíssimo, fato que ele não percebeu.
Chegou ao supermercado, e avistou de imediato o ser causador de sua fúria. Dirigiu-se a ele, em êxtase. Sustentava um sorriso maldoso nos lábios, quando esse o interpelou: "que queres novamente aqui? Não já lhe disse que da próxima vez chamaria a polícia?" Ele engoliu seco. Em seguida, após gaguejar por alguns segundos, respondeu: "eh, vim... Eu vim lhe pedir desculpas. Não deveria ter lhe dito tanto insultos, afinal, a culpa foi toda minha." O gerente lhe sorriu, como quem considera estar a frente de um completo imbecil. Em seguida, o celular desse tocou, fato ao qual respondeu dando as costas ao inimigo. Ele percebeu que este era o momento exato para seu feito histórico. Tirou do bolso a faca, levantou o braço o mais alto que pode e, no momento em que iria desferir o golpe, sentiu a cabeça rodar novamente e perdeu os sentidos, caindo instantâneamente ao chão.
Despertou na sala do gerente, sentado em uma cadeira muito desconfortável. Esse fitava-o sorridente, como quem acabara de ouvir uma piada muito boa. Ao notar seu despertar, iniciou: "Acha que conseguiria vingar-se desta forma? Está na cara que não tens estrutura para empreender o roubo que tentou anteontem... Imagina um assassinato? O que és, um lunático? hahaha!". Ele saiu correndo da sala do gerente. Ao chegar a rua, porém, acalmou o passo. Veio andando lentamente, em meio a chuva, rindo feito um louco. Ria por ter sustentado, por tanto tempo, a idéia de que era um ser extraordinário. Ria, como forma de punir a si mesmo, e ao mesmo tempo em que ria se dilacerava por dentro. Sentiu toda a força que lhe restava esvair-se. Sentou na calçada, à porta de casa. Mexeu com uma senhora acompanhada,propositalmente, e levou inúmeros socos e pontapés do marido ofendido. A dor física conferia maior intensidade a auto-punição. Ao notar que estava plenamente satisfeita a necessidade de punir-se, sentiu, então, um último prazer.
Entrou em sua casa e fechou a porta. Nunca mais se teve noticias dele.
p.s.: Qualquer traço de literatura russa, não é mera coincidência.

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