quarta-feira, agosto 26, 2009

“É sangue mesmo, não é mertiolate”

Horário de almoço. Uma hora para relembrar como é bom não fazer nada, comer muito e falar bobagem. Apenas uma hora do seu dia de trabalho, a qual o empregador benevolente lhe oferece para que você lembre como é bom um fim de semana. Todavia, tive meu momento de prazer interrompido por cenas bizarras. Foi no meu horário de almoço que vi aquela explosão de bizarrices exibida por um tubo de imagens pela primeira vez.

Duas coisas sempre me fizeram mudar de canal na TV: a imagem de Fausto Silva ou um “merchan”. Ao contrário do que se diz por ai, ninguém muda de canal por ver uma imagem de violência, seja ela um quebra pau generalizado ou uma morte ao vivo. É estranha essa nossa excitação com a desgraça alheia... Mostrar desgraça prende a atenção de qualquer pessoa, de qualquer classe social. Penso que esse sentimento vem da certeza de que iremos morrer e talvez de uma forma bizarra como as que vemos espetacularmente na TV. O sentimento é “pô, ainda bem que ainda não foi comigo”. De qualquer forma, sempre me pareceu terrível querer ver repetidas vezes alguém vivendo o seu próprio pesadelo, e de fato é difícil encontrar alguém que discorde do sentido bizarro que tem essa excitação com a desgraça alheia... Mas o fato é que ela existe e que as emissoras de TV já descobriram isso há muito tempo. Programas como os de Ratinho, Datena e outros tantos senhores barrigudos que xingam os ladrões e elogiam o trabalho da polícia, sobrevivem, ano após ano, utilizando a mesma fórmula.

Naquele dia, sentado e almoçando, eu já sabia de tudo isso e já achava muito comum, a despeito de ser bizarro. Mas uma coisa me assustou: como pode alguém transformar em piada, em chacota, em quadro do “Zorra Total” a desgraça alheia? O “programa” exibia imagens de corpos fuzilados, estupradores sorrindo e assumindo a culpa, mães desesperadas por terem seus filhos viciados presos por roubos e furtos, tudo isso acompanhado de uma trilha sonora entusiasmada e efeitos sonoros cheios de risos e expressões “hilárias”.
Não é compreensível. Não é nem humano. Que as pessoas gostem de ver desgraças, vá lá, com isso eu já tinha me acostumado. Mas transformar a desgraça de nossas favelas em programa de humor? É sinal de algum respeito transparecer algum horror com esse tipo de cena, ainda que se queira vê-las novamente, todos os dias, de segunda a sábado, das 17 às 19. Rir não! Fazer musiquetas não! Já é demais pra minha cabecinha. No dia em que pararmos de fingir que ficamos horrorizados com coisas horríveis, o mundo estará próximo do fim.

Na busca desesperada por outros rostos com expressões de revolta, resolvi olhar ao meu redor dentro do galpão onde almoço. Imaginem vocês que o programa era, de fato, de humor, porque as pessoas sorriam, e pediam pra aumentar o volume, e sorriam mais. O espetáculo da bizarrice ganhou novos contornos, avançou, se sofisticou, e eu, pelo visto, parei no tempo. Hoje em dia vidas destruídas pelo tráfico ou ladrões sendo mutilados têm graça. É hilário. E eu ainda não sabia. Lembrei de uma música da Legião:

"É sangue mesmo, não é mertiolate”
E todos querem ver
E comentar a novidade.
"Ó tão emocionante um acidente de verdade."
Estão todos satisfeitos
Com o sucesso do desastre:
"- Vai passar na televisão."

E continua passando na televisão. E no horário de almoço.

Eu engoli o último garfo de feijão concluindo que um país onde se dá um prêmio de um milhão de reais a um cara como Dado Dollabela, nunca terá salvação (depois fui alertado pelo lado feminino da relação sobre como isso parece “um lugar comum vazio”. Realmente parece! Mas como fazia parte do raciocínio inicial, mantive, apesar de concordar com a crítica. O que seria de nós sem o lado ácido feminino das coisas?) O espetáculo de horror, contudo, ainda é opcional. Não preciso me revoltar ainda. Como é bela a democracia! Continuarei almoçando, não vou mais tentar salvar o mundo, e já defini meu lugar favorito do galpão: qualquer um que me deixe de costas pra TV. Bom apetite, para todos nós.

Um comentário:

Tiago Lorenzo disse...

Mas nossas crianças estarão salvas, porque não passa cena de sexo com xereca meio-dia.
Isso sim seria terrível!

Aliás, acho sim que devemos nos preocupar! Afinal, elas dançam pagode!