quarta-feira, março 10, 2010

Dr. Jekyll and Mr. Hyde

Eu fiz uma viagem corrida hoje para renovar meu visto e assim poder concretizar a tão esperada revisita aos States. Às 7:50 da manhã, horário em que normalmente eu nem estou acordada, eu já estava desembarcando em Recife. Meu companheiro de viagem foi um livro água com açúcar, comprado às pressas, chamado “Lembra de mim?”. A trama envolve uma mulher de 28 anos que sofre um acidente de carro e perde a memória. Em sua última lembrança ela tinha 25 anos, dentes e cabelos horríveis, um emprego medíocre e um namorado canalha e desprezível. Mas, para sua surpresa, ao acordar, ela percebe que tem a vida que sempre sonhou: tornou-se uma executiva de sucesso, com dentes perfeitos, lábios de silicone e um marido rico e bonito. É claro que ela acaba percebendo que pagou um preço caro por tudo isso e que nada é tão perfeito assim. Daí vocês podem tirar as conclusões que quiserem sobre meus hábitos de leitura que, somados aos meus estranhos hábitos alimentares (macarrão cru, sopa de miojo e leite com cigarro) e musicais (mania de assistir ao TVZ do Multishow e de ouvir música de corno), me tornam uma pessoa um tanto quanto... bem, pensem o que quiserem.

No táxi, a caminho do consulado, conversando com o taxista tagarela – um fenômeno recorrente em Recife – me dei conta de que já faz quatro anos desde a última vez em que estive lá. Deus, quatro anos é uma vida! Então me peguei pensando: e se eu sofresse um acidente e os últimos quatro anos se apagassem da minha memória? Será que eu ficaria tão chocada quanto a personagem do meu romance clichê? Eu sempre me pego pensando que nada tem acontecido na minha vida e que eu sou absolutamente a mesma pessoa que sempre fui, mas isso não está nem perto da verdade. É que as coisas vão acontecendo tão gradualmente que nós nem percebemos o quanto mudamos. De repente, um dia você acorda e pronto – é outra pessoa.

Há quatro anos atrás eu estava na faculdade, vivia com o pouco dinheiro que eu ganhava estagiando em uma espécie de ONG, usava sandálias de couro, vestidões floridos, morria de vergonha de falar com meus colegas de trabalho e todos os bares que eu freqüentava eram botequins. Hoje eu uso pérolas (de mentira, é claro), blush, trabalho em um banco, posso beber onde eu quiser (ou quase isso) e me tornei uma controladora a quem todos obedecem no trabalho. Se eu não tivesse assistido à novela toda, não entenderia como foi que isso pode acontecer. Mas eu assisti. E o problema todo está aí. Eu me sinto como se essa fosse a vida de outra pessoa.

Tem coisas sobre mim que eu simplesmente não consigo entender. Eu me vejo no trabalho e penso: quem é essa pessoa? Eu tento entender minhas escolhas amorosas e me pergunto: onde estava meu cérebro esse tempo todo? Nem eu consigo acreditar no quanto eu consegui ser ingênua e me deixei levar. Quem era aquela pessoa que viveu no meu lugar nos últimos quatro anos? E, principalmente, onde eu estava com a cabeça para usar sandálias de couro?

Eu me lembro que uma vez minha prima me disse isso, que ela sentia que não era ela a pessoa que tinha vivido determinadas coisas da vida dela. E lembro também de ter pensado: coitadinha, ela está em processo de negação. Só pode ser isso. Eu devo estar em processo de negação. Todas as coisas das quais não me orgulho, essas foram arte da Outra. Eu não estava lá. Eu estava só assistindo. Eu continuo a mesma de sempre. Nada de novo me aconteceu desde que eu tinha 21 anos.

Eu tenho um amigo que brinca com isso, sobre o fato de termos todos duas personalidades. Uma para praia, outra para o campo. Uma que levanta cedo e vai trabalhar, outra que gosta de farrear até tarde. Você culpa uma ou outra de acordo com a conveniência. A gente acaba fazendo muita piada sobre isso, mas a verdade é que cada um de nós é uma pessoa só. A gente tem coisas boas e coisas ruins, dependendo do ponto de vista. Não somos definidos unicamente por uma coisa ou outra.

É por isso que às vezes as pessoas tem opiniões tão diferentes sobre nós, porque elas pegam a única característica visível para elas e definem toda a idéia que fazem sobre a gente em cima daquilo. Aquela única característica passa a definir toda a sua identidade. Quem teve a boa sorte de ver seu lado bom, guarda aquela imagem de você. Mas para quem só viu sua paranóia, você será eternamente não confiável.

É claro que, se os nossos dois (ou muitos) lados estão sempre presentes, o que definirá a forma como alguém te vê não é necessariamente o que você mostrou àquela pessoa, mas, muito provavelmente, o que aquela pessoa escolheu ver em você. E isso, às vezes, simplesmente não depende de você. Eu já encontrei muitas pessoas que não conseguiram me perdoar pelos meus erros. Com certeza elas tiveram seus motivos. Recentemente eu encontrei uma pessoa que me disse: “ah, você tem tantas coisas legais... Porque é que eu vou me importar com isso (leia-se: essa enorme burrada que você fez)? Todo mundo faz besteira de vez em quando”.

Eu sei que devemos assumir a responsabilidade pelas coisas que fazemos. Mamãe e papai acertaram pelo menos nisso. Mas é tão reconfortante saber que existem pessoas no mundo que podem aceitar seu lado médico e seu lado monstro, e ainda assim acreditarem que o lado negro da força não prevalecerá no final. Dá vontade de ser melhor.

2 comentários:

Anônimo disse...

Muitas destas reflexões já se passaram pelas cabeças das pessoas que realmente pensam. Críticas bem consistentes. O que você tem contra sandálias de couro?

Samuel

Fernanda Furtado disse...

Além de serem feias e fedidas? rs.