quinta-feira, abril 01, 2010

Dom Quixote, o trânsito e a vontade de mudar o mundo

Começo o texto com um parêntesis, considerando que isso seja aceitável. Este blog, em tempos remotos, trouxe ao leitor um contato relativamente íntimo com grandes pensadores das ciências humanas, apresentando discussões extremamente complexas e estimulantes e conectando-as ao seio de nosso dia-a-dia, explicando (ou não) fenômenos de nosso cotidiano. O parêntesis é justamente para explicar que, à minha revelia (e falando por mim, e não por minha esposa virtual), a relação entre o tempo em que tenho que viver, de fato, entre problemas burocráticos e métodos mais ou menos eficazes de ganhar dinheiro, e o que posso perder lendo e esquecendo que o mundo existe, mudou radicalmente. Ultimamente tenho tido tempo de ler e-mail do chefe e sinopse de filme. Acho que isso tem sido o suficiente para evitar o surgimento de retardos mentais. Pelo menos isso. Bom, o fato é que o blog segue adiante com histórias do nosso cotidiano que nós, donos deste pequenino espaço, do alto de nosso autoritarismo, julgamos interessantes. Vejam só essa.
Eu sempre tive um orgulho imenso do modo como dirijo. Mas o motivo de tal orgulho, não se enganem, supera a constatação de que tenho as habilidades de um bom condutor. O que me deliciava, deixava entusiasmado, e fazia-me sentir uma pessoa que contribui para um mundo melhor, é o papel de motorista-educador que eu sempre fiz questão de exercer no trânsito.
O cara queria formar fila dupla no engarrafamento, e lá estava eu fechando a porta; outro investia na contramão, mas não imaginava encontrar a mim, guardião da moral rodoviária, buzinando e dando sinais de luz; outro me dava sinais de luz para ultrapassar sendo que estava no limite da velocidade da via, e eu, representante da sagrada lei que rege o trânsito desse país, resistia - num ato de bravura - mantendo-me a 80 por hora. Muitas vezes os transgressores, verdadeiros subversores da ordem e bons costumes do trânsito, me venciam, mas eu morria brigando: nenhum passava sem uma buzina, uma olhada feia, uma fechada de porta.
O mundo se tornava levemente melhor quando eu encampava ações corretivas contra esses desviados, desvirtuadores da ordem pública. Eu era um herói. Sentia um sorriso nos rostos dos pedestres; as pessoas deviam falar de mim, tipo, “olha, aquele cara que não dá mole pros espertinhos no trânsito passou aqui hoje novamente”. Provavelmente, existiam admiradores. Quem sabe um fã clube. Nada mais justo. Heróis estão cada dia mais raros.
Meus dias de glória tiveram fim numa simples carona. O cara era esse tipo de motorista pé duro, bravo, grosso, estúpido, um transgressor típico. Eu, na condição de caroneiro, nada podia fazer. Não poderia entrar em ação sob pena de perder a carona. Mas eu vi a luz no fim do túnel. Uma ponta de esperança para um coração aflito pela vitória eminente do mal: outro herói, ao ver o dito cujo entrar na contramão, buzinou, sinalizou e olhou feio. Que maravilha! Esse mundo está cheio de outros educadores, pensei. Pessoas abnegadas, focadas no objetivo maior de transformar nosso trânsito e, por conseqüência, nossa sociedade em algo melhor! Em meio a esses pensamentos, o tal motorista abriu a janela, olhou nos olhos do meu colega herói e disse “vá se foder, viadinho de merda! A rua é sua é?”. Enquanto eu me preparava para repreender a ação infame, fui surpreendido pelas gargalhadas uníssonas dos outros caroneiros.
Era o fim. Não se poderia mudar o mundo assim. Senti-me um Dom Quixote, numa guerra que só existia em minha mente confusa, e da qual eu não teria a menor chance de sair vitorioso e vivo ao mesmo tempo. O máximo que consegui, durante todo esse tempo de abnegação educativa no trânsito, foi ter sido chamado inúmeras vezes de viadinho de merda. O que não muda nada, tanto na minha orientação sexual, quanto no trânsito e na sociedade. A sorte é nunca ter apanhado. Ou batido o carro. Ou os dois. Onde eu estava com a cabeça? Perguntaria minha mãe...
É muito ruim constatar, mas eu não posso contribuir para uma elevação qualitativa no comportamento da sociedade através do trânsito. E eu achei mesmo que poderia. Agora, piso fundo, aumento o som e torço pra chegar logo em casa. Que se fodam os transgressores e os viadinhos de merda. Não sou mais herói, mas tenho chegado a minha casa todos os dias. O que importa é chegar em casa! E tenho dito.

5 comentários:

Anônimo disse...

Ok. Já ouviu a história do beija-flor? Coloque água dentro do papo e vá em frente!

Anônimo disse...

guardião da moral rodoviária???!!! Uma profissão desistimulante em nosso país! kkkkkkk

Antonio Rimaci disse...

pq vcs n assinam os comentarios? :/

Felippe disse...

Post perfeito!

Eu tbm fui guardião da moral rodoviária. E agora tbm chego em casa.

Adorei ler o texto. Obrigado por me dar esse prazer.

Anônimo disse...

karaka to sem faze nada mesmo kkkkkkkkkkkkk